Professor da Universidade da Califórnia e da New School for Social Research, Loïc Wacquant é considerado um dos maiores especialistas mundiais em prisões. Em "As Prisões da Miséria", obra já publicada em Portugal, explica como as ideias dos neo-conservadores americanos atravessaram o Atlântico e se tornaram "senso comum". "Se a ascensão do Estado Penal é particularmente brutal na América, a tentação de recorrer a instituições judiciais e penitenciárias para jugular os efeitos da insegurança social faz-se também sentir em toda a Europa", avisa.
PÚBLICO - O que pensa do sistema prisional português?
LOÏC WACQUANT - Sei que a taxa de encarceramento é a terceira mais alta da Europa. Aqui, como noutros países europeus, o número de reclusos tem vindo a aumentar e isso parece-me um desenvolvimento alarmante, porque todos os estudos comparativos mostram que não há relação entre o nível de encarceramento e o nível de crime. A história penal mostra também que a prisão não cumpre a sua missão de recuperação e reintegração social. A verdade é que destrói as pessoas, isola-as, empurra-as para uma espiral de desvalorização.
Fala num "pânico moral" em ascensão na Europa...
Nunca a taxa média de ocupação das prisões foi tão alta e a evolução da criminalidade não justifica isso. Os políticos gostam de pôr os holofotes no crime, gostam de ser vistos a desenvolver acções contra o crime, porque não querem lidar com problemas mais sérios, em particular com o desemprego. O Estado demite-se das suas responsabilidades sociais e os políticos transformam a luta contra o crime num espectáculo moral para reafirmar a autoridade do Estado.
Ouvi dizer que Rudolph Giuliani [o antigo "mayor" de Nova Iorque que lançou as políticas de tolerância zero] veio cá [a convite de Santana Lopes e de Luís Filipe Menezes]. Acho isso ridículo e assustador. Ridículo porque gerir a polícia de Nova Iorque não tem nada a ver com gerir uma polícia numa cidade portuguesa: é uma tradição de policiamento muito diferente e de crime também. Os políticos fizeram isso só para obterem um selo de modernidade, de americanismo - porque a América é vista como um país de ponta. Quiseram dar um sinal de que estavam seriamente empenhados em combater o crime, mas contaram uma má anedota ao eleitorado.
E assustadora porquê?...
O discurso político que avança na Europa é que penalizar um problema é bom e funciona. Adaptar as técnicas americanas de limpeza das ruas à Europa não resolve problema nenhum, pelo contrário. Isso é usar a prisão como um aspirador dos rejeitados pela sociedade (sem abrigo, toxicodependentes, doentes mentais, desempregados, estrangeiros clandestinos, pequenos delinquentes ocasionais). Faz-se desaparecer essas pessoas durante um tempo, mas isso é como pôr o lixo debaixo do tapete.
É a internacionalização do "senso comum" punitivo americano?
Estamos no início do desenvolvimento de um agressivo Estado penitenciário, mas ainda vamos a tempo. Os cidadãos têm de perceber que isto é uma opção política: que tipo de Estado Portugal quer construir? Um Estado Social que providencia os meios de vida e de apoio (saúde, educação, habitação) para todos? Ou um Estado que abandona a sua missão social e se transforma num Estado policial, que limpa as ruas e mantém a ordem nos bairros pobres?
O custo da opção penal é enorme. Aumentar a polícia, os tribunais e as cadeias é muito caro. Mais caro do que desenvolver emprego. Não sei em Portugal, mas na Califórnia são precisos 28 mil dólares por ano para manter uma pessoa atrás das grades. O salário mínimo é 13 mil dólares por ano. Podia-se dar um emprego: ’Pagamos-te desde que não cometas crimes’. Era uma opção muito mais inteligente para pessoas presas por ofensas menores.
O fim do Estado Providência resulta invariavelmente na construção do Estado Penitenciário?
Se não combates a pobreza tens de desenvolver uma política de combate aos pobres. E combater os pobres é tratar os pobres como inimigos. O dilema é que dizes: "Não te ajudamos a ter saúde, casa, emprego". E crias uma situação em que as pessoas não têm saúde, casa, emprego. A necessidade toma conta da vida. Como dizem os meus amigos dos guetos de Chicago: "Tens de pôr comida na mesa todos os dias". O que vão fazer para o conseguir?
Criar uma economia criminal?
Claro. Depois podes vir detê-los, julgá-los, encarcerá-los, e dizer que estás a reprimir o crime. Quando saírem da cadeia, já aprenderam mais técnicas, estão imbuídos na cultura do crime, têm mais contactos. Na verdade, recrutaste aquelas pessoas para o mundo do crime. Tornaste o problema pior.
Mostro, no meu livro, que o crime diminui nos Estados Unidos, também onde não houve tolerância zero. E em Nova Iorque não diminui por causa do aumento do encarceramento, mas pela conjugação de vários factores: melhoria da economia, diminuição do número de jovens, transformação do mercado de droga, nova imigração... O que a Europa tem de perceber é que a criação do Estado penal não combate o crime, porque não gera emprego, educação, apoio social.
“Estamos no Início do Desenvolvimento de Um Agressivo Estado Penitenciário"
Para Loïc Wacquant, "se o Estado é que decide o castigo, então deve administrá-lo". Pegando no exemplo americano, sustenta que a privatização das cadeias não se conjuga com o respeito pelos reclusos.
Portugal está a ensaiar um modelo de gestão partilhada de uma cadeia [em Santa Cruz do Bispo, Matosinhos] com uma instituição de cariz religioso [A Santa Casa da Misericórdia do Porto]. Qual a sua opinião sobre este tipo de solução?
Vejo isso de uma maneira completamente diferente da privatização das cadeias. Acho que se isso levar à prisão mais programas é bom, desde que se mantenha a prisão dentro da autoridade do Estado. A privatização prisional é um desastre. O país que privatizou mais foi os Estados Unidos, que tem operadores privados a conceber, a construir, a gerir prisões [inclusive o serviço de vigilância]. A população reclusa não pára de crescer [em 2003, a taxa de encarceramento era de 686 por cada cem mil habitantes]. Estas empresas têm interesse em ter mais e mais presos. Fazem dinheiro com cada novo preso que têm. Reduzem serviços de saúde, de apoio social, cortam programas de educação, de trabalho. As pessoas morrem porque não recebem cuidados médicos.
O crescimento do sector foi muito rápido...
As cadeias de gestão privada foram de zero, em 1987, aos 140 mil presos em 1998. Depois, até havia especulação na bolsa. As prisões eram um dos três investimentos mais recomendados. Com o colapso da bolsa [1999 e 2000], também houve um colapso da especulação das prisões. Houve uma série de escândalos [como o da Wackenhut Corrections, acusada de tratar os reclusos de Jena, na Louisiana, "como animais de quatro patas, que andavam descalços, com a roupa suja e, com frequência, tinham de lutar pela comida"].
Há vários países europeus a iniciar a privatização.
Claro. As prisões constituem um mercado atraente para os grupos privados. Mas é uma questão de filosofia política: deve-se privatizar o castigo? O castigo é dado pelo Estado em nome da colectividade. Se o Estado é que decide o castigo, acho que então deve administrá-lo. Porque também é uma questão de responsabilidade legal.
Fala como se a gestão privada fosse incompatível com o respeito pelos direitos dos presos...
No papel, todos prometem que melhores prisões do que no sector público. E, às vezes, no início, é verdade. As prisões são novas, têm a última tecnologia, mais espaço, mais sol e, tipicamente, ficam com os reclusos mais fáceis. O problema é que, com o passar dos anos, as condições das prisões tornam-se más. Para fazer dinheiro, os privados também desinvestem nos guardas. São mal recrutados, mal treinados, mal pagos, não querem saber do seu trabalho. Nos Estados Unidos, 15 anos depois, podemos ver que as condições de detenção são piores ou iguais às do sector privado. E, no fim, o Estado não poupa dinheiro, porque tem mais processos [judiciais] por maus tratos e mais violência.
Data de introdução: 2005-02-16