Rui Manuel da Silva Pedro, missionário scalabriniano é o Director Nacional da Obra Católica Portuguesa de Migrações, orgão executivo da Conferência Episcopal Portuguesa, desde 2000. Nesse ano foi nomeado pela CEP secretário da Comissão Episcopal de Migrações e Turismo e em 2003 foi escolhido para membro do Conselho Consultivo para a Imigração. Em 2004 chegou à Comissão "Migrações" do Conselho das Conferências Episcopais da Europa.
Rui Pedro, um padre de 44 anos, sempre esteve ligado a missões relacionadas com as migrações: Foi capelão dos imigrantes cabo-verdianos de Roma (Itália); missionário de portugueses e italianos em Longwy, diocese de Nancy (França); vigário na paróquia multicultural de Haucourt-St. Charles, diocese de Nancy (França); coordenador do Colectivo de Organizações Católicas para a Imigração/CORCIM; secretário do Secretariado Coordenador de Associações para a Legalização/ SCAL; missões volantes em vários países (Austrália, Argentina, África do Sul, Canadá, Luxemburgo, Suíça, entre outros).
Por ocasião do I Encontro Mundial das Comunidades Portuguesas, que se realizou no Porto, no final do mês de Março, impunha-se esta grande entrevista.
SOLIDARIEDADE - Nos últimos tempos fala-se de Portugal como país de imigração. E quase se esquece a realidade portuguesa que contabiliza cerca de cinco milhões de emigrantes por esse mundo fora.
PADRE RUI PEDRO - Nós entendemos que há indícios de uma certa perda de memória quanto a esta marca que tem a nossa história e a nossa condição de alma de povo português. Cinco milhões são aqueles que ainda mantêm a documentação portuguesa. Com os luso-descendentes creio que podíamos duplicar esse número que, ainda de forma muito concreta, se refere à cultura portuguesa, apesar de não ter passaporte ou nacionalidade. O país continua a dever muito aos emigrantes porque as remessas de dinheiro e o turismo são as duas grandes receitas que mantêm o equilíbrio da nossa balança económica. Estas pessoas continuam a confidenciar à Igreja e às suas estruturas alguma discriminação e também alguma sensação de que elas foram removidas da consciência colectiva do país. A realidade nacional não tem tido a emigração nas suas agendas e nos seus planos. Devido a estes últimos cinco anos, em que a emergência nacional e as respostas imediatas aos problemas da imigração colocaram anda mais na penumbra a realidade emigratória, nós quisemos carregar o silêncio trazendo para o debate nacional esta questão.
SOLIDARIEDADE - A Igreja está a tentar recordar essa realidade ao poder político? Parece-lhe que os sucessivos governos se têm alheado dos problemas da emigração?
PADRE RUI PEDRO - Não me compete a mim ajuizar essas políticas. Sou um homem da Igreja. Aquilo que eu posso dizer é que tal como nós, Igreja, também os governos têm a mesma dificuldade. Temos uma imagem que se resume ao perfil de emigrante que é aquele que parte de uma casa e depois regressa. Nós hoje estamos a assistir a uma maior diversidade de destinos e de perfis. É difícil catalogar o emigrante, mas subsiste o preconceito na mente dos residentes. Há novos destinos, novas situações e novos emigrantes. Os cidadãos portugueses a circularem na Europa não são mais emigrantes, são cidadãos europeus. Mas, curiosamente, apresentam contornos muito semelhantes aos dos anos 60. Os novos perfis, os novos destinos, as novas histórias, têm deixado tanto o Estado como a Igreja, de certo modo, impreparados para darem respostas adequadas. O que significa que a famosa modernização, ou a nova geografia dos consulados - que revela a dificuldade do Estado em fechar e abrir consulados - traz a inquietação de que hoje é preciso pedir aos académicos e às pessoas que estão no terreno que nos digam que mudanças estão a acontecer na emigração. Os emigrantes lamentam-se sempre de que estão esquecidos e que são cidadãos de segunda... Temos igrejas de acolhimento de emigrantes, modificações profundas da geografia das dioceses, dos apoios e dos recursos humanos. Para os apoiar há que proceder a um repensamento, quase diria, radical. O nosso modelo está desadequado, perante as mudanças que o mundo está a ter ao nível do diálogo inter-religioso, do diálogo ecuménico, do diálogo inter-cultural. As nossas estruturas têm que ser espaços destes diálogos e a Missão Católica Portuguesa, onde ela ainda existe, tem que se abrir à igreja local. De modo a que os portugueses não criem o seu gueto e façam uma igreja nacional mas que participem na igreja universal.
SOLIDARIEDADE - Em Portugal existe uma situação intermédia. Somos um país de imigrantes mas o fluxo de saída não estancou. Actualmente, qual é a tendência que esse fluxo apresenta?
PADRE RUI PEDRO - O INE tem dito que estão a partir por cada ano à volta de 30 mil pessoas para fixarem residência no estrangeiro por mais de um ano. Mas nós, que estamos no terreno, podemos garantir que esse número é muito maior. Há quem fale numa mobilidade de cerca de 100 mil portugueses a sair, por ano, e muitos sob a veste do sazonal. Os missionários vão-nos dando informações de que há pessoas a chegar todas as semanas. Os novos fluxos têm uma característica de invisibilidade. Nós não sabemos que eles partem e não sabemos que eles reentram. Um pároco dizia-me "eu só sei que partiram homens para as vinhas de França quando eles voltam". É um fenómeno invisível. São emigrantes sazonais, mas muitos deles passam o seu tempo nas quintas agrícolas, nos estaleiros ou nas redes de hotelaria que os integram e isso leva a que eles, mesmo tendo em mente uma curta permanência - sempre a ideia de ganharem muito dinheiro em pouco tempo -, estão isolados, não falam a língua e não participam. Não há relacionamento e não são detectáveis pelas igrejas locais. Outra característica deste fluxo: Cidadãos portugueses já com depressão na sua vida aqui em Portugal, que não conseguem acompanhar o modelo social que o país criou, colocaram-se num nível de vida que não conseguem mais viver - a questão dos endividamentos, por exemplo -, pessoas com projectos familiares quebrados, pessoas desempregadas a longo prazo e pessoas licenciadas, sobretudo jovens, casais, que vão tentar exercer as suas profissões no estrangeiro, na hotelaria e noutras áreas. Temos, por outro lado, indicações de alguns países, infelizmente, de que os portugueses são criadores de problemas porque estão desintegrados; temos também nestes fluxos pessoas tocadas pelo álcool, toxicodependência e por outros circuitos, desde o divertimento nocturno até à prostituição. Os portugueses já estabelecidos são conhecidos como trabalhadores honrados, bem comportados, submissos que não criam problemas. Estes outros que criam uma má imagem da nosso cultura que entra em choque com a da primeira geração.
SOLIDARIEDADE - Então, o emigrante português já não existe?
PADRE RUI PEDRO - Nós temos que fazer a reconceptualização da condição migrante. Diante da diversidade cultural, da diversidade de espaços e localizações e diante da globalização, hoje, temos de reconsiderar esta realidade. Nós, Igreja, temos que procurar outras respostas pastorais de forma a integrarmos nas nossas estratégias pastorais uma diversidade de métodos e de acções para que possamos cobrir todos os diferentes perfis que existem hoje da emigração.
SOLIDARIEDADE - Passam por alterações consideráveis em termos de reorganização da Igreja?
PADRE RUI PEDRO - Há alterações importantes. Neste momento, algumas igrejas da Europa estão a reestruturar-se por falta de pessoal e têm em conta a prática religiosa dos fiéis e a nova geografia que é preciso criar. São igrejas deficitárias em clero e não podem manter o esquema de relacionamento com os emigrantes por questões financeiras e de recursos humanos. Neste momento temos dioceses onde há quatro missionários portugueses e no próximo ano só será possível ter dois. Outra alteração tem a ver com a necessidade da Igreja ter um novo olhar sobre a emigração. Ela quase entrou na falsa percepção, que o Estado também cultiva, que é a da que a emigração acabou. Ouve-se dizer: nós que fomos um país de emigração agora somos um país de imigração. Passamos a vida a corrigir isto. Nós continuamos a ser um país de emigração e sê-lo-emos sempre. Estamos na Europa, onde houve um grande desenvolvimento, mas continua a haver gente a partir. As desigualdades aumentam e há oportunidades para as quais muitos parecem estar sempre excluídos. A emigração fará sempre parte do nosso futuro. Não estamos no tal país de sucesso e o fluxo de saída tem tendência para aumentar. As novas liberdades de deslocação facilitam esta tendência.
SOLIDARIEDADE - A União Europeia e a cidadania europeia escondem esta realidade?
PADRE RUI PEDRO - É neste espaço que temos assistido às mais indignas situações de exploração de mão-de-obra, situações de escravatura, através das sub-contratações destes portugueses que partem, confiando nas empresas que os contratam, normalmente abordados por portugueses. Tem sido na UE que temos visto alguns sinais de xenofobia com os portugueses, que também se verificam na África do Sul e no Zimbabwe ou noutros países fora da Europa. Mas, no espaço da cidadania europeia, estamos a assistir a situações vergonhosas, no que diz respeito à indignidade humana, assistimos a situações típicas de desigualdade de tratamento pelo facto de ser estrangeiro. Há pouca fiscalização do trabalho temporário, uma nova modalidade praticada na UE. Há um vazio onde é lançado o emigrante, onde ele se vê privado dos seus direitos.
Se não fossem alguns sindicatos a falarem disso nós não sabíamos o que se passava porque são fenómenos que os consulados desconhecem. O emigrante é alugado a empresas. O contrato que assina não lhe garante direitos, não há informação e muitas vezes o que lhe prometem não é cumprido no destino. Desde as condições de alojamento, aos salários, passando pelas condições de segurança social e seguros. Na Inglaterra o que nos valeu foi uma ONG local que denunciou estas situações e mexeu com os governos português e britânico.
SOLIDARIEDADE - A Igreja tem como missão essa fiscalização de que fala.
PADRE RUI PEDRO - A Igreja tem que vigiar pela justiça e pelos direitos humanos. Nas migrações ela tem-no feito, nem sempre de forma mediática. A Igreja existe para servir o homem e por isso é fundamental, para nós, essa missão. É o que tem acontecido nalguns sítios, noutros não. Às vezes fica no religioso, fica no seu gueto mental da fé e, no entender da Obra Católica Portuguesa das Migrações, a Igreja deve ser voz daquilo que nos confidenciam e procurar levar essas inquietações aos governos. Nós temos que ser a voz dos portugueses espalhados pelo mundo.
SOLIDARIEDADE - Nós tratamos melhor os Imigrantes do que somos tratados por esse mundo fora?
PADRE RUI PEDRO - A pergunta é difícil. Olhando para o modo como temos tratado os imigrantes encontramos um sinal evidente de que perdemos a memória. Tendo nós comunidades portuguesas em 125 países; tendo nós ao longo dos últimos anos um património grande de direitos e benefícios, pelo facto de andarmos pelo mundo; isso não se fez património político nem património de boas práticas. Nós que fomos explorados desde os anos 60 na Europa, a nível da habitação, a nível do trabalho, a nível de assistência social e religiosa, acabamos por fazer o mesmo com os que chegaram aqui.
Fomos e somos emigrantes, sabemos o que isso é e, antes que nos peçam, deveríamos dar porque outros nos deram antes de nós pedirmos. Os estudos recentes disseram de que somos o país da Europa com maior índice de xenofobia. Nós que temos a menor percentagem de emigrantes, anda pela casa dos 5 por cento! Porque é que é exactamente aqui onde há mais xenofobia? Dá que pensar à Igreja que tem de descobrir um novo tipo de pedagogia.
SOLIDARIEDADE - Os estudos recentes dizem que é preciso facilitar a legalização dos imigrantes por razões de colapso demográfico e por razões económicas…
PADRE RUI PEDRO - Alguns acusam-
-nos de sermos a favor das políticas das portas abertas. Não é verdade. Tem que haver uma gestão humana e regulável dos fluxos migratórios. O importante, a nosso ver, é não burocratizar muito a imigração, não dificultar a obtenção de papéis que leva a que surjam intermediários e que se consigam métodos ilegais mais rápidos e mais caros. No nosso país, havendo já fluxos consideráveis de diversas origens, como são o caso da Ucrânia e da Moldávia, não se compreende que não se tenham criado estruturas consulares de modo que se possa regular a e controlar as candidaturas desde a origem. Nós precisamos deles. Facilitando a imigração nós evitaríamos situações de redes de exploradores. Nos últimos anos a imigração só tem sido vista pelo aspecto da irregularidade, não pela naturalidade. A imagem que tem passado para a população é a de que a imigração é uma coisa clandestina, quando se trata de um direito reconhecido pela própria Igreja.
SOLIDARIEDADE - A Igreja em Portugal está preparada para receber os imigrantes?
PADRE RUI PEDRO - A Igreja antecipou o Estado nas aulas de português aos estrangeiros, em algumas medidas de protecção social, a igreja chamou sacerdotes ucranianos para acompanharem aqui os seus conterrâneos, ela mesmo não estando preparada foi formidável na sua criatividade pastoral, no que diz respeito a encontrar respostas. Mas, ainda há muito trabalho a fazer.
Data de introdução: 2005-04-29