1 - Ainda hoje recordo um texto do meu livro de Português da 4ª classe, um excerto de “Os Fidalgos da Casa Mourisca”, de Júlio Dinis – já lá vão cinquenta e três anos.
Era assim:
“ – Que dia aquele, Sr. Jorge! Eu nem lhe sei dizer o que sentia em mim! Eu sei lá?! Quando voltei da casa do doutor, com o escrito da quitação no bolso, vinha a tremer, pulava-me no peito o coração como o de uma criança; abri sorrateiramente aquela porta da quinta, e sozinho, como um ladrão, sem que ninguém me visse, entrei aqui. Digo-lhe que estava quase louco. Até falei alto; lembra-me bem do que disse ao ver-me cá dentro: Isto é meu! E depois que sabia que era meu, parecia-me outra coisa tudo isto. Meu! Eu não me fartava de repetir esta palavra! Meu! Estas árvores eram minhas, estas fontes eram minhas, até estes pássaros, que por aí cantavam, eram meus, porque enfim vinham fazer ninhos e cantar no que me pertencia. Vai rir-se, se eu lhe disser o que fiz. Eu abracei estas árvores, eu bati palmadas nestes muros, lavei-me nesses tanques todos, bebi água dessas fontes, deitei-me à sombra dessas árvores, eu cantei, eu saltei, eu chorei, e afinal … quer que lhe diga? Não tive mão em mim que não me ajoelhasse para beijar esta terra! beijei, sim, beijei esta terra, que eu ganhara à custa de muito trabalho, de muito suor e de nenhuma vileza. Tinha orgulho, e tenho-o, em me lembrar de que tudo isto me viera de eu ser honrado e amigo de cumprir a minha palavra.”
Alguns anos mais tarde li o livro inteiro – os livros de Júlio Dinis, hoje quase desconhecidos, faziam parte da aprendizagem dos hábitos de leitura literária dos jovens da minha geração -, dizendo respeito a passagem acima descrita a uma fala do lavrador Tomé da Póvoa dirigida ao jovem fidalgo da Casa Mourisca, Jorge.
Este via as propriedades da sua família a definhar e arruinar-se, por incúria e má administração de sucessivas gerações de antepassados, e foi pedir conselho a Tomé da Póvoa, abastado lavrador que começara a vida como criado da Casa Mourisca.
(A Casa Mourisca é uma boa metáfora do País.)
Foi nesse contexto que o lavrador lhe descreveu o que sentira quando liquidara a última prestação e remira a dívida do empréstimo que assumira para a compra da sua primeira propriedade, a Herdade.
2 – Claro que o bom do Tomé da Póvoa, embora a sua ciência proviesse mais da observação da natureza do que da leitura das gazetas – o romance passa-se no final da primeira metade do Século XIX -, certamente sabia que não são só os particulares que pedem emprestado.
Também os Governos o fazem.
Numa outra fala, no mesmo contexto, procurando convencer Jorge a pedir emprestado para restaurar as finanças da sua casa, Tomé da Póvoa argumenta, na verdade, assim: “Não fica mal um empréstimo, Sr. Jorge, quando se procura satisfazer com lealdade os compromissos que se ajustaram. Então não vê que até os governos pedem emprestado?”
O que o Tomé não sabia é que, enquanto ele trabalhava esforçadamente para pagar a sua dívida e, assim, poder verdadeiramente chamar seu ao que seu era, o governo de então fazia sucessivos “defaults” e entrava alegremente em bancarrota.
Só no reinado da Rainha D. Maria II (filha de D. Pedro IV), cuja segunda parte do reinado, após a Restauração Constitucional, durou de 1834 a 1853 – tempo histórico do romance -, houve bancarrota em 1834, 1837, 1840, 1846 e 1852.
A Herdade era sua, na verdade – e Tomé bem podia corrê-la toda com o entusiasmo do noivo no dia do casamento.
Mas o País não era seu da mesma maneira que a Herdade, segundo a sua própria maneira de ver – por estar hipotecado aos credores.
3 – Bem sei que os antigos não gozam actualmente entre nós de grande crédito ou prestígio: os antigos ainda vivos, os velhos, são vistos pelo pensamento hoje dominante como um peso, um encargo, uma despesa, uma “peste grisalha”; e os antigos já mortos, os escritores que nos deixaram os valores e fizeram a língua, não constam dos planos das escolas e ninguém os lê.
(Não queria deixar passar este tópico sem o registo de uma lembrança e uma sentida homenagem a Vasco Graça Moura, um verdadeiro homem da Renascença: que, de par com uma copiosa produção literária de grande qualidade e fulgor, sempre combateu corajosamente também no plano da cidadania – nomeadamente em defesa da “portuguesa língua” (como lhe chamou António Ferreira, no Século XVI), zurzindo com a acutilância e a ironia do seu verbo o nefasto (Des)Acordo Ortográfico.
Tive o gosto, em 1977, então jovem editor de poesia, de publicar alguns poemas inéditos de Vasco Graça Moura, numa colectânea – “exercícios de dizer” - de textos literários de gente do Porto, como o próprio Vasco, José Augusto Seabra, Fernando Echevarría, Fernando Guimarães … e outros.
Mas isso era quando o Porto tinha voz …)
Voltando à lição dos antigos: o actual contexto português, com a prevista conclusão do programa de assistência financeira e a saída da troika durante este mês de Maio, tem algumas parecenças com os juízos simples mas certeiros do lavrador Tomé da Póvoa.
Também sou dos que defendem, como Tomé, que, as dívidas, há que pagá-las.
Sejam os particulares, sejam os países.
A troika sai; mas a dívida fica.
E a dívida de Portugal, não só não diminuiu, como, pelo contrário, aumentou – aumentou pelo menos no valor da quantia que nos foi emprestada pela trioka.
Como dizia Tomé da Póvoa, “não é vergonha pedir um empréstimo, quando se faz em condições de poder por ele aliviar-se um homem de dívidas mais pesadas e de credores mal intencionados, e resgatar e melhorar a propriedade.”
Mas não basta querer pagar - é necessário gerar recursos para a pagar.
Vejamos o que dizia o mesmo Tomé da Póvoa, esse ficcionado lavrador português do Século XIX: “Todo o meu empenho era remir depressa a minha dívida, porque, enquanto o não fizesse, parecia-me que não podia chamar ainda meu a isto. Deus ajudou-me com anos felizes e com boas colheitas, e como continuava com o arrendamento das Barrocas e depois com estes negócios de gado, pude, mais cedo do que esperava, pagar a minha última prestação e remir a dívida.”
Na linguagem de hoje chamaríamos crescimento a esta digressão pragmática do lavrador da Herdade – ganhar, para poder pagar.
Mas para que Portugal produza aquilo de que necessita para pagar a dívida tem que ter forças para trabalhar, não pode encontrar-se tão debilitado que nem possa segurar a enxada ou o arado.
De novo Tomé da Póvoa, agora como destinatário de outras sentenças: “Anda para diante, Tomé … Se queres que o cavalo te não deite a terra e te leve a longa jornada, dá-lhe bem de comer; a ração de aveia que lhe furtares da manjedoura é a que mais cara te sai.”
Vem tudo nos livros.
É preciso é lê-los.
Henrique Rodrigues – Presidente da Direcção do Centro Social de Ermesinde
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