1 - Na semana passada, por razões profissionais, tive ocasião de estudar a Proposta de Lei nº 236/XII, enviada pelo Governo à Assembleia da República, relativa à chamada Contribuição de Sustentabilidade, medida tributária destinada a substituir a CES – Contribuição Extraordinária de Solidariedade.
A CES, como se sabe, constitui uma contribuição, apresentada como extraordinária, ou excepcional, que, em 2013, incidiu sobre o montante das pensões de aposentação e reforma superiores a 1.350,00 euros brutos por mês e que, em 2014, incide sobre idênticas pensões, mas agora a partir de 1.000,00 euros brutos por mês.
Essa Contribuição, introduzida pela Lei do Orçamento de Estado para 2013, mereceu então o pedido de fiscalização da respectiva constitucionalidade, junto do Tribunal Constitucional, pedido formulado pelo Senhor Presidente da República, pelo Provedor de Justiça e pelos partidos da esquerda parlamentar.
Concretamente, o Senhor Presidente da República – que, para além de ser o mais alto magistrado da Nação, é também professor de Finanças Públicas -, argumentou com a sua convicção quanto à real natureza da CES – um verdadeiro imposto, a seu ver -, como uma das vias para impugnar a constitucionalidade dessa Contribuição, imputando igualmente à medida a violação do princípio da igualdade proporcional e o princípio da tutela da confiança – princípios constitucionalmente garantidos, como sabemos.
O Tribunal Constitucional não conferiu, no entanto, o selo de inconstitucionalidade a essa medida - a CES -, pelo que a mesma, validada pelo Tribunal Constitucional, continuou em vigor até final de 2013, permitindo ao Governo cortar em cada mês desse ano e nos subsídios de férias e Natal, para além do costumado IRS e da respectiva sobretaxa, mais uma fatia da pensão a cada pensionista ou reformado, fosse da Caixa Geral de Aposentações, fosse do Centro Nacional de Pensões, fosse de fundos de pensões, desde que o montante da pensão fosse igual ou superior a 1.350,00 euros.
Na Lei do Orçamento de Estado para 2014, a Assembleia da República, sob proposta do Governo, aprovou a renovação dessa Contribuição em 2014, nos mesmos moldes em que a mesma fora aplicada em 2013 – também para as pensões superiores a 1.350,00 euros.
Entretanto, no 1º Orçamento Rectificativo para 2014, o Governo propôs o alargamento da base de aplicação da CES em 2014 a todas as pensões de montante superior a 1.000,00 euros, em vez dos 1.350,00 euros da versão inicial do Orçamento de Estado.
Este alargamento da base de aplicação da CES, de 1.350,00 para 1.000,00 euros, encontra-se actualmente em apreciação de fiscalização sucessiva no Tribunal Constitucional, a pedido dos partidos da esquerda parlamentar.
2 – O Senhor Presidente da República foi muito criticado, em várias instâncias, por não ter enviado para o Tribunal Constitucional, para fiscalização, preventiva ou sucessiva, a disposição da Lei do Orçamento de Estado para 2014 que renovou para o mesmo ano de 2014 a medida da Contribuição Extraordinária de Solidariedade.
Se em 2013 o Presidente julgara a medida inconstitucional – e, de harmonia com o seu entendimento de então quanto à natureza da CES, remetera para o Tribunal Constitucional o pedido de declaração de inconstitucionalidade -, deveria, em nome da coerência, segundo essas vozes críticas, repetir o procedimento no ano seguinte, de 2014 – uma vez que a medida era a mesma.
Compreendo, no entanto, a posição, a omissão, do Presidente da República em 2014.
A coerência que ele achou importante manifestar não foi com as suas próprias opiniões – mas foi com o princípio constitucional da separação e da limitação de poderes.
O Presidente da República, na verdade, não deve ter mudado de opinião sobre a CES, de 2013 para 2014.
Nem havia razão para mudar: tive também a oportunidade, igualmente por razões profissionais, de estudar a fundamentação do pedido da Presidência da República, ao Tribunal Constitucional, para apreciação de constitucionalidade da CES no Orçamento de Estado para 2013.
Trata-se de uma peça jurídica de grande profundidade e clareza, alicerçada num argumentário coerente e convincente, com a qual é difícil não concordar.
Tenho para mim como certo que o Presidente da República teve razão jurídico-constitucional no pedido.
Mas, por umas ou outras razões, o Tribunal Constitucional não lha deu.
E o Presidente da República tirou a conclusão que as regras de funcionamento da nossa democracia, sobre a separação de poderes e o respeito pelas competências de cada órgão de soberania, exigiam.
Não apenas tirou a conclusão, como incorporou tal conclusão no próprio exercício das suas competências – isto é, para o Presidente da República, pronunciou-se quem tinha competência constitucional.
3 – Claro que o Presidente da República poderia insistir, em 2014, e com razão de substância, pela inconstitucionalidade da CES – pedindo de novo ao Tribunal que se pronunciasse.
Podia fazer como o Governo tem feito: convencido, ou não, das suas razões nas sucessivas medidas que, desde 2011, o Tribunal Constitucional tem declarado inconstitucionais, o Governo insiste, repete, renova, amplia, disfarça as medidas que haviam sido chumbadas pelo Tribunal – sem integrar na sua actuação posterior os conteúdos decisórios do mesmo Tribunal, sem modificar as suas propostas, sem obedecer, em suma, ao Tribunal.
Numa espécie do jogo do gato e do rato – em que procura vencer pelo cansaço.
Mas esta insistência do Governo nas mesmas medidas tem sido objecto de críticas generalizadas, que as classificam como uma provocação ao Tribunal.
(Curiosamente, são os mesmos que criticam o Governo por não respeitar as decisões do Tribunal Constitucional que criticam o Presidente por … as respeitar.)
E já vamos, com efeito, no terceiro Orçamento de Estado, em três anos, a merecer, em questões centrais, a censura do Tribunal Constitucional.
Nem um escapou.
Ora, tenho para mim que, nestas melindrosas relações entre órgãos de soberania, a forma como o Presidente da República acolhe e integra na sua própria intervenção pública o resultado legítimo da intervenção dos demais órgãos constitucionais, no que são as competências destes, mesmo que contrariando as próprias opiniões do mesmo Presidente, é mais afeiçoada às regras da democracia constitucional liberal que nos rege do que a perseverança do Governo na confrontação com o Tribunal Constitucional.
“Errare, humanum est; perseverare, diabolicum”.
4 – Mas toda esta conversa veio a propósito da Proposta de Lei nº 236/XII, com que comecei a crónica.
Não se destina esta crónica a comentar a nova Contribuição aí prevista, também exclusiva para reformados, como a CES.
A seu tempo se virá ao assunto.
Mas há um pequeno tópico, marginal às questões de fundo da Proposta, que não resisto a comentar com os meus leitores.
A certo passo do texto da Exposição de Motivos da Proposta de Lei em questão, em papel timbrado da Assembleia da República, o Governo refere-se aos “… compromissos de sustentabilidade das finanças públicas (como) … incorporados na Lei do Enquadramento Orçamental … aprovada pelos partidos do arco da governação …”
Ainda perceberia que no discurso político, pródigo em chavões de efeito imediato ou em sound-bytes, ou no comentário encartado, que simplifica a realidade para a nos explicarem, possa ocorrer essa expressão – “partidos do arco da governação”.
(Há quem lhe chame “arco da governabilidade”, como o Senhor Vice-Primeiro Ministro, remetendo para uma semântica da competência – governabilidade - por troca com a semântica da habilitação – governação.)
Que os próprios interessados e os seus arautos na imprensa se atribuam a unção, o privilégio, o exclusivo para exercer funções de Governo, para delimitarem o campo dos partidos habilitados a governar-nos, referindo-se ao PS, ao PSD e ao CDS – que são, de facto, quem nos tem pastoreado - como se não houvesse mais mundo e mais democracia fora desse núcleo, é uma coisa.
Podemos discordar, mas é com eles.
Agora que seja o Governo, órgão de soberania, para mais num documento de Estado – uma Proposta de Lei, a enviar à Assembleia da República – a desprezar a representação virtual de metade dos portugueses, instituindo partidos de 1º e partidos de 2ª, e a ceder à facilidade dos sound-bytes no próprio discurso legislativo, no coração da democracia, é verdadeiramente um escândalo.
Não digo como na Bíblia, sobre o que fazer a quem é motivo de escândalo.
Mas que tal lerem uns livros? Os clássicos, que ajudam a pensar; são a basezinha, como diria o Eça.
Henrique Rodrigues – Presidente do Centro Social de Ermesinde
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