1 - Em Agosto de 2004, deixei nesta crónica o palpite de que a coligação do PSD de Santana Lopes com o PP de Paulo Portas seria como os amores de Verão - intensos, mas fugazes.
Alguns meses bastaram para confirmar a previsão - à aparente euforia inicial veio a suceder a feia discussão na praça pública das quezílias e das queixas recíprocas e a implosão da coligação em estilhaços.
Pouco tempo depois - em Outubro de 2004 - também neste lugar augurei, a propósito da reforma do Eng. Mira Amaral , de 3.500 contos mensais, que em breve o Governo viria dizer aos funcionários públicos que a situação financeira da C.G.A. impunha a diminuição das suas reformas.
Este vaticínio cumpriu-se esta semana, pela voz do actual Ministro das Finanças, Dr. Campos e Cunha.
Não se trata de nenhum dom divinatório meu. Mas a gente, com os anos, atinge um grau de cepticismo que faz com que as coisas que acontecem raramente nos surpreendam.
Como diz a sabedoria popular, muito sabe o diabo, não por ser sábio, mas por ser velho.
Vou portanto continuar com estas crónicas. Não são elas que provocam os acontecimentos; apenas por vezes os antecipam.
2 - O que hoje me traz a terreiro é o défice e a dúvida de saber se há vida para além dele.
(Claro que há - "a dúvida é a vida", como escreveu, num poema, David Mourão Ferreira).
Por grosso, pode dizer-se que quem vai pagar a crise são os funcionários públicos: aumenta-se-lhes a idade da reforma dos 60 para os 65 anos de idade, mesmo àqueles que começaram a trabalhar antes de 25 de Abril de 1974, modifica-se, para pior, a fórmula de cálculo da pensão inicial, igualando-a à utilizada para o regime geral da Segurança Social.
Diz o Governo que estas mudanças visam terminar com "privilégios injustificados" dos funcionários públicos; e que aquilo a que chama "convergência" com o regime da Segurança Social é feito em nome da justiça.
De acordo com as boas técnicas de
agit-prop, trata-se primeiro de preparar o ambiente para o apoio popular - e populista - ao "fim dos privilégios".
Foi, por um lado, o tom geral dos jornais ligados aos grandes grupos económicos (os editoriais do Director do Público de ataque à função pública são, a este propósito, um verdadeiro paradigma).
Foi, por outro lado, o coro, (com o papel que tinha na tragédia grega) dos sábios do costume, normalmente economistas com passado ou presente na administração da banca, sempre os mesmos a dizerem sempre o mesmo nos mesmos sítios, augurando os malefícios da máquina do Estado e da burocracia na competitividade do país e reclamando o fim dos "privilégios".
Foram, por cima, os empresários adventícios, novos-ricos dos tempos da democracia, cuja acumulação do capital nasceu da manipulação bolsista dos idos de 80, com o dinheiro dos outros e a complacência de políticos rendidos à riqueza e aos seus vícios, a juntar-se ao mesmo coro, e a serem ouvidos como sumidades nos mesmos jornais.
E foram, por baixo, o
mix de políticos, ex-políticos e empreendedores - como agora se diz -, que entre si distribuíram os despojos nas privatizações, fazendo seu, a preço de saldo, o que pertencia a todos; também eles indignados com os "privilégios".
Entende-se: os banqueiros querem continuar a não pagar impostos, e que sejam os pobres a pagar por eles; os empresários do dinheiro dos outros pretendem um Estado com dinheiro folgado, para, com o talento que os exorna, o irem buscar para si próprios.
3 - Eu creio que o Senhor Ministro das Finanças terá quem lho lembre.
Mas deixo também aqui algumas lembranças, que mostram que a situação da Caixa Geral de Aposentações não é culpa dos funcionários e aposentados da função pública, mas dos governos, e que a tese peregrina da "convergência" com o regime geral da Segurança Social é pura demagogia e mistificação.
Mais valeria que o Ministro dissesse ao país que, enquanto os patrões descontam para a Segurança Social 23% dos salários dos seus trabalhadores, o patrão - Estado não faz o mesmo, relativamente aos seus empregados, para a Caixa Geral de Aposentações, pelo que esta, por culpa exclusiva dos governos, se encontra descapitalizada.
E que, relativamente às dezenas de milhar de autarcas e ex-autarcas, deputados e ex-deputados, ministros e ex-ministros, governadores civis e ex-governadores civis, que obtêm volumosas reformas ao fim de apenas doze anos de descontos ou menos, quem paga esses privilégios, à custa das contribuições dos trabalhadores da função publica, é a Caixa Geral de Aposentações.
Dos trabalhadores, a Caixa recebe descontos durante 36 anos e paga a pensão durante um média de 20 anos - da idade da reforma, que é de 60 anos, à esperança média de vida, que anda pelos 80.
Dos políticos, recebe descontos durante 12 anos e paga a pensão durante cerca de 45 anos.
(Às vezes até recebe descontos cerca de um ano e paga pensões de 3.500 contos, como no caso referido do Eng. Mira Amaral).
Eu creio que o Ministro das Finanças, nas medidas que propuser, será sensível aos direitos adquiridos dos trabalhadores da função pública, e não voltará a dizer o que disse: que esses direitos só vigoram até ao final do corrente ano.
É que tais direitos já existem, embora só projectem a sua execução prática aos 60 anos de idade.
Que terá essa sensibilidade, parece--me que resulta do facto de, ainda esta semana, ter recusado renunciar a direitos adquiridos - embora no caso estivesse apenas a falar da sua própria reforma de 1.600 contos por mês, por 6 anos de serviço no Banco de Portugal.
(Já me pareceu menos bem, na entrevista que concedeu à RTP-2 no dia 29 de Maio, e num gesto de identificação com as vítimas das suas medidas, ter salientado que ele próprio seria afectado com a passagem da reforma dos 60 para os 65 anos - quando se veio a saber, dois dias depois, que o mesmo governante, que tem menos de 60 anos, já se encontra reformado, num serviço público, com 1 600 contos de reforma).
Na verdade, nisto de pedir sacrifícios, é mister pedi-los a todos, com equidade, em nome da justiça; com rigor e sem demagogias, em homenagem ao pudor.
Ninguém leva a mal ao Governo que seja pertinaz na luta contra o estado das contas públicas, se ele for liso nos argumentos e se der o exemplo a partir de dentro.
O "ostinato rigore", para além de ser um bom mestre na arte poética, como no belíssimo livro de Eugénio de Andrade a que esta crónica foi roubar o título, é também bom guia para as boas contas.
Mas, se lhe faltar o rigor , a "ostinatio" é apenas teimosia.
* Presidente da Direcção do Centro Social de Ermesinde
Data de introdução: 2005-06-28