1 - “Nesta fúria de pedras mortas, um Governo deslumbrado pelas realidades faraónicas e absorvido pela poderosa ideia da máquina do Estado, tudo concentrou em Lisboa, porque tudo faz depender do Poder Central. Como os homens, também as terras gozam de preferências discricionárias. Portugal é o Terreiro do Paço, o enxamezito de alguns privilegiados de Lisboa, ou dos amigos dos amigos de Lisboa.”
Parecem de hoje, estas palavras; e vale, hoje, este retrato.
Mas têm já 58 anos: fazem parte do discurso – ainda se chamavam assim, as intervenções públicas – do General Humberto Delgado, no Coliseu do Porto, em 14 de Maio de 1958, data da visita de Delgado ao Porto, no apogeu da campanha eleitoral para Presidente da República, quando o Povo do Porto verdadeiramente o ungiu como o seu candidato.
(Como já aqui escrevi, tive o privilégio de trabalhar, durante a minha vida como advogado, no mesmo escritório de um dos sete democratas do Porto que convidaram Delgado para ser o candidato da Oposição a Presidente da República, na sequência da sugestão de António Sérgio e de Henrique Galvão quanto ao impacto dessa candidatura na dissolução da ditadura de Salazar.
A candidatura do General Sem Medo nasceu no Porto, com gente do Porto – e só foi, tardiamente, aceite pela “aristocracia” lisboeta quando o seu sucesso era imparável.
As assinaturas de proposição dessa candidatura, entregues no Supremo Tribunal de Justiça em 19 de Abril de 1958, eram todas de cá de cima, do Norte, fundamentalmente de Vila Nova de Gaia e do Porto.
O processo, com as assinaturas reconhecidas pelo notário de Vila Nova de Gaia, encontra-se no Arquivo Distrital do Porto.)
Alguns anos mais tarde, em 1974, após o 25 de Abril, Francisco Sá Carneiro não divergia desse diagnóstico.
Como consta do III vol. dos Textos, publicados pelo Instituto Francisco Sá Carneiro, o antigo Primeiro-Ministro asseverava que “a ditadura significou o declínio do Porto e o desprezo do Norte”, sendo “indispensável que a democracia implique o ressurgimento desta cidade e o progresso da zona mais populosa de Portugal.”
2 – Os dois políticos a que acima me refiro são os patronos dos dois principais aeroportos de Portugal: o Aeroporto do Porto leva o nome de Francisco Sá Carneiro; e o de Lisboa, por proposta do presidente da Câmara, o portuense Fernando Medina, e por decisão concordante do Governo, vai ser baptizado com o nome do General Humberto Delgado.
Foi, na ocasião, muito criticada, e considerada de mau gosto, a atribuição do nome de Francisco Sá Carneiro ao Aeroporto do Porto – melhor, de Pedras Rubras -, para onde se dirigia o Cessna que transportava o então Primeiro-Ministro, para o comício de encerramento da campanha presidencial do General Soares Carneiro – e que caiu em Camarate.
Já o baptismo do Aeroporto da Portela com o nome do General Humberto Delgado não só não suscitou dúvidas ou reservas, como, pelo contrário, foi geralmente saudado com naturalidade: Delgado era General da Força Aérea, foi o primeiro Director-Geral da Aeronáutica Civil, tendo sido ele quem, nessa qualidade, criou a TAP, para a aviação comercial, e o seu nome está escrito de forma imperecível na história recente de Portugal.
Vai, todavia, sendo tempo de pensar num novo padrinho, e num novo nome, para o também novo Aeroporto de Lisboa (em Alcochete …? na Ota...? no deserto … “jamais, jamais”?: em breve saberemos).
O que já sabemos é que a construção desse novo aeroporto voltou à ordem do dia, onde estivera durante o consulado de José Sócrates – e donde fora acertadamente retirado logo no início do mandato de Passos Coelho como Primeiro-Ministro.
Aí já estão novamente os interesses, os lobbies, os negócios, as parcerias público-privadas, que tanto servem o PSD como o PS (e deles se servem), que andam há anos a tentar arranjar pretextos para justificar a construção de um novo aeroporto na capital, com as correspondentes contrapartidas, comissões e negociatas paralelas, a voltar à tona com o normal desembaraço, aproveitando o novo quadro político e o regresso ao círculo do poder de alguns dos protagonistas, pelos piores motivos, do tempo de José Sócrates.
Tenho como certo que, nem João Semedo ou Mariana Mortágua, nem Paulo Sá ou Honório Novo, não obstante a competência demonstrada nas comissões de inquérito parlamentar ao colapso assistido dos sucessivos bancos, irão ser convidados por esses mesmos bancos, ou por sociedades financeiras com eles mancomunadas, quando cessar a actual solução governativa, para lugares de administradores, executivos ou não-executivos, desses bancos ou sociedades financeiras ou de investimento.
Esses lugares são o duvidoso privilégio e o prémio de quem se encontra dentro do sistema e afeiçoado a ele.
Por essa razão – e por outras, naturalmente -, a auditoria cidadã espera que o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista não esmoreçam no papel, que a actual coligação lhes confere, de serem uma espécie de grilo falante a azucrinar os ouvidos da gerência do País pelo PS, a fim de este desta vez resistir ao apelo e às tentações do bloco central de interesses que tem dominando, no indiferenciado centrão, as soluções de governo e os negócios por ele propiciados ao longo dos últimos 40 anos.
Bloco central que tem exaurido o País e os portugueses, em benefício da corte e dos círculos da capital.
(Já escrevia Sá de Miranda, no Séc. XVI: “Não me temo de Castela,/ Donde inda guerra não soa,/ Mas temo-me de Lisboa, /Que, ao cheiro desta canela/ O reino nos despovoa.”)
Na verdade, como diria o PCP, não é suficiente demonstrar que há alternativas ao bloco central; é preciso que as políticas sejam também elas alternativas.
3 – Os anos de austeridade e empobrecimento que vivemos durante o Governo de Passos Coelho podem fazer-nos esquecer, tal o seu impacto, os anos anteriores, sob José Sócrates, que todavia só findaram há cerca de 5 anos.
Parece que foi há uma eternidade …!
Mas é prudente e saudável recordar esses anos; e lembrar como, debaixo de cada pedra, espreitava um escândalo; em cada vão de escada, florescia um negócio escuro; à conta de cada contrato, nascia um swap.
Como já escrevi acima, na agenda do grande investimento público, a gente das comissões e dos negócios volta à carga com a construção do novo aeroporto de Lisboa.
Não é necessário, já se concluiu.
O facto de a capital do País ter um aeroporto em plena área urbana constitui uma vantagem competitiva, no turismo e nos negócios.
E a capacidade do aeroporto da Portela é a suficiente para o tráfego de passageiros que o utiliza: quer hoje, quer numa projecção de 10 anos.
Ora, se a realidade não justifica os negócios que, por conta do Estado e em prejuízo dos contribuintes, os mesmos de sempre querem fazer em seu proveito, o que há a fazer é mudar a realidade, afeiçoando-a aos seus interesses.
O tráfego de passageiros da Portela não justifica a construção de um novo aeroporto?
Tal não será um problema: aumenta-se artificialmente esse tráfego, desviando para Lisboa o tráfego internacional que demandava o Porto e esvaziando a procura do Aeroporto Francisco Sá Carneiro.
Prejudicando intencionalmente o Porto e o Norte, entenda-se!
Essa estratégia, de desvio de tráfego, do Porto para Lisboa, que a gestão da TAP tem promovido, para justificar a construção do novo aeroporto, beneficia da cumplicidade aparente do Governo, que todavia adquiriu posição dominante no capital da companhia também com os impostos pagos pelo pessoal cá de cima; mas não mostrou ainda para que lhe serve tal posição, se não é exercida em benefício da coesão nacional.
E tem merecido contestação unânime das forças vivas da Região Norte – autarquias, empresários, dirigentes políticos, cidadãos -, sob a égide da Câmara do Porto, numa mobilização geral que tem sido exemplar.
Porque têm inteira razão.
4 - Querem dar o nome de Humberto Delgado à Portela, como deram, logo após o 25 de Abril, em 1974, à Praça do Município, na cidade do Porto, onde tenho, há 40 anos, o meu escritório?
O General bem o merecia.
Mas creio que melhor iria ao ar do tempo, e aos objectivos dos proponentes, em vez de dar ao Aeroporto da Portela o nome de Humberto Delgado, dar-lhe o de Humberto Pedrosa.
Henrique Rodrigues – Presidente do Centro Social de Ermesinde
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