HENRIQUE RODRIGUES

Deus não dorme

Social-democrata na economia, liberal quanto ao funcionamento do sistema político, conservador nos costumes: eis a síntese, precisa, que li algures aplicada a António Guterres, enquanto retrato da personagem e avaliação do seu tempo de Governo.

Síntese precisa e virtuosa, em minha opinião.

Após uma década de betão, nas obras e nas mentalidades, era tempo de abrir os espíritos aos problemas das pessoas, principalmente daquelas a quem a vertigem europeia tinha deixado para trás.

A “picareta” tinha essa utilidade suplementar: fender a muralha de cimento, para colocar, do lado de dentro, “as pessoas, primeiro”.

Os meus leitores ainda estarão lembrados do grau de crispação que marcou com o selo da intolerância o ambiente político dos últimos anos de governo cavaquista – uma das razões que conduziu à vitória de Guterres, precisados que estávamos de um clima mais desanuviado e de uma vontade de dialogar com os outros que nos vinha desde há muito rareando.

Essa que foi uma das acusações mais persistentemente feita a António Guterres, a de a vontade do diálogo muitas vezes inibir a capacidade de decisão, tenho-a à conta de virtude, não de vício.

(Sou suspeito, já que tenho António Guterres na conta do melhor Primeiro Ministro de Portugal que conheci.)

Exemplos de chefes de Governo que fazem da pura “glória de mandar” a base e o timbre, capazes de decidir a torto e a direito – mais a torto que a direito, valha-nos a verdade… – em regra mais em benefício próprio do que em favor dos cidadãos, infelizmente não nos faltam.

Prefiro-lhes a indecisão de Guterres, fundada na capacidade de se “outrar”, como escreveu Fernando Pessoa.

E, quanto aos costumes, como não recordar, nestes tempos em que regressam à tona, agora com outra cobertura política, os temas fracturantes, a sensatez das suas ideias, ainda que sempre intransigentes na promoção e na defesa dos direitos humanos?

2 – Cá no Sector temos saudades…

Guterres foi o primeiro Chefe do Governo a colocar o papel das Instituições Solidárias e dos seus dirigentes voluntários no centro do discurso político de topo.

Antes dele, é justo lembrar o papel desempenhado por Morais Leitão e Bagão Félix, no tempo da AD, de Silva Peneda, durante o cavaquismo, quer na lei, quer no discurso, na defesa da identidade e da autonomia das Instituições, não como um valor em si, mas como uma contribuição estrutural na construção de um modelo de Estado Social robusto e democrático, com o contrapeso da sociedade civil a temperar a proverbial pulsão autoritária dos Governos.

Os direitos humanos respiram melhor, na verdade, quando a sua defesa não repousa apenas na mão imperial, sempre tentada a mandar, mas também na mão que cuida, na mão do próximo.

Mas tratava-se então de membros do Governo – importantes no percurso da solidariedade durante o regime democrático, é certo, mas sempre dependentes das políticas gerais.

(Ainda recordo, durante o mandato de Silva Peneda, a grande concentração em Alfena, para mostrar a Cavaco Silva a dimensão do Sector.)

Guterres foi, no entanto, o primeiro Chefe de Governo a alcandorar o voluntariado solidário à tona das suas reflexões e políticas e a assumi-lo como seu aliado na luta por um País menos desigual e mais justo.

(Já que estamos em balanço histórico, é também justo salientar que, depois de Guterres, foi Passos Coelho quem conferiu idêntico relevo ao Sector Solidário – o que também serve para demonstrar que o nosso envolvimento na construção e defesa do Estado Social atravessa estavelmente os anos e os Governos.

Há é quem o reconheça; e quem não o reconheça…

Mas aí são outros os contos…)

3 – Foi com Guterres que foi assinado o Pacto de Cooperação para a Solidariedade, convocando toda a área social da Administração Pública, Central e Autárquica, para o diálogo e a concertação com o Sector Solidário, inaugurando uma cooperação alargada cuja matriz ainda hoje perdura.

Foi com Guterres que foi lançada a Rede Nacional da Educação Pré-Escolar, em cooperação com a UIPSS/CNIS, permitindo o alargamento a praticamente todas as crianças da frequência em jardim de infância – actualmente, perto de 95% nos 4 e 5 anos, como nos mostra o estudo do Conselho Nacional da Educação, publicado no último “Notícias à Sexta”, sendo praticamente de metade a colaboração da Rede Solidária nesse nível de cobertura.

(Embora tenha sido o Governo seguinte do PS, que, pela mão da Ministra da Educação, Maria de Lurdes Rodrigues, mais atacou os alicerces desse modelo …)

Foi com Guterres que a UIPSS/CNIS foi chamada a colaborar na concepção e no desenvolvimento do Programa do Rendimento Mínimo Garantido, numa cooperação que ainda hoje assegura praticamente todo o trabalho de inserção dos beneficiários – como sabem e não dizem os que querem rasurar da fotografia o papel central das IPSS numa verdadeira promoção social dos mais desfavorecidos.

4 - Os tempos mais recentes têm assinalado uma nova convergência entre as Instituições Solidárias e António Guterres: o acolhimento a refugiados, aí onde a intolerância, a perseguição e a guerra violam os direitos humanos mais elementares.

A CNIS, por intermédio de dezenas de Instituições associadas, em articulação com a PAR – Plataforma de Apoio aos Refugiados –, no Programa PAR Famílias, constitui a rede mais densa e numerosa de acolhimento em Portugal de famílias fugidas da guerra; e encontra-se igualmente na primeira linha do programa de acolhimento de menores não acompanhados, hoje acolhidos em campos de refugiados, na Grécia ou na Turquia, no Líbano ou na Jordânia.

As Instituições que se encontram envolvidas nesse processo têm a noção de que ainda persistem muitos constrangimentos e muitos nós a desatar, para aumentar o ritmo de acolhimento das pessoas que fugiram do teatro da guerra, da tortura ou da perseguição política.

Essa será também seguramente uma das primeiras prioridades de António Guterres: facilitar as burocracias, aproximar as pessoas das Instituições, denunciar os atropelos aos direitos humanos, fazer a paz.

Estaremos também com ele nesse percurso.

No meio do caminho tem muitas pedras, como diria o Carlos Drummond de Andrade.

Mas quem melhor do que uma picareta para parti-las?

 

Henrique Rodrigues – Presidente da Direcção do Centro Social de Ermesinde

 

Data de introdução: 2016-10-15



















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