Foi há 20 anos assinado e dizia logo no início: “O Pacto de Cooperação para a Solidariedade Social será, pois, o instrumento redefinidor das áreas, regras, pressupostos e condições de cooperação, abrindo ainda caminho para a revisão global da legislação aplicável às Instituições Particulares de Solidariedade Social e para eventuais alterações a introduzir no quadro legal das autarquias locais.
Nestes termos, o Governo, representado pelo Primeiro-Ministro, a Associação Nacional dos Municípios Portugueses (ANMP), a Associação Nacional de Freguesias (ANAFRE), a União das Instituições Particulares de Solidariedade Social (UIPSS), a União das Misericórdias Portuguesas (UMP) e a União das Mutualidades (UM), representadas pelos respectivos Presidentes, celebram o presente Pacto de Cooperação para a Solidariedade Social”.
No final do documento figuram as assinaturas do primeiro-ministro António Guterres e dos presidentes da ANMP, Mário de Almeida, da ANAFRE, Manuel Marçal Pina, da, então, UIPSS - União das Instituições Particulares de Solidariedade Social (hoje CNIS), padre José Maia, da União das Misericórdias Portuguesas, padre Vítor Melícias, e da União das Mutualidades Portuguesas, António da Costa Leal, que anuíam em seguir um caminho que se regesse por “um instrumento que visa criar condições para o desenvolvimento da estratégia de cooperação” entre o Setor Social, “que prosseguem fins de solidariedade social”, o Estado Central e as “Administrações Regional e Local”.
Ao colocarem as respetivas assinaturas no Pacto de Cooperação para a Solidariedade Social, todos os subscritores assumiram que, como se pode ler no documento, “cooperarão entre si com os seguintes objetivos:
a) Desenvolvimento de uma rede de apoio social integrado, contribuindo para a cobertura equitativa do País em serviços e equipamentos sociais;
b) Melhoria da qualidade e eficácia dos serviços e equipamentos sociais existentes e aperfeiçoamento das metodologias de intervenção;
c) Fomento de iniciativas que visem a minimização dos efeitos das desigualdades e injustiças sociais e a promoção da dignidade e qualidade de vida e da saúde das pessoas, das famílias e das comunidades;
d) Corresponsabilização dos diversos agentes dos sectores público e social e desenvolvimento sócio local no fomento das iniciativas previstas no presente instrumento de cooperação;
e) Otimização dos recursos disponíveis, de modo a possibilitar melhores prestações sociais, assentes nas relações custo/benefício/qualidade dos serviços”.
QUEM FAZ O QUÊ
Estabelecia-se quem faz o quê na ação social direta, numa altura em que o Setor Solidário pugnava pela sua afirmação, depois de muitos anos de vazio normativo, que poucos anos antes começava a ser desbloqueado. Importa lembrar que eram tempos de fortes investidas políticas no sentido de municipalizar a ação social, como recorda o padre José Maia, à época presidente da UIPSS, hoje CNIS: “Quando me tocou assumir a responsabilidade de assumir a presidência da União a situação era confrangedora. Ainda me lembro de ir ao Largo do Rato a reuniões com técnicos da Segurança Social… até ao dia em que me saltou o testo e disse que não ia a mais nenhuma reunião com técnicos. É que os técnicos da Segurança Social é que ditavam as regras para as IPSS e, então, disse que aquilo acabava ali”.
O padre José Maia liderou a UIPSS/CNIS de 1988 a 2003 e recorda de forma muito viva os tempos de afirmação das IPSS, que, na opinião dele, começam em 1992, com a publicação do Despacho Normativo nº 75/92, que em 2017 celebra 25 anos.
Eram os tempos da famosa reunião em Alfena, “convocada em 24 horas e onde esteve Cavaco Silva e o ministro Silva Peneda”, respetivamente, primeiro-ministro e ministro da Segurança Social, e que ficou conhecida pelo «Grito de Alfena».
“Foi o Grito do Ipiranga, em que dizíamos que não aceitávamos mais aquela situação e, então, saiu o Despacho nº 75/92”, conta o padre José Maia, lembrando: “O Despacho foi trabalhado pela Direção e pelo seu assessor jurídico da União, doutor Costa Fernandes, linha a linha e a nossa ideia foi a de nunca mais deixar que fossem eles a construir normativos, mas fôssemos nós a ter a iniciativa”.
Para o então líder da UIPSS/CNIS, “havia intencionalidade, atitude e firmeza” e, com o Despacho Normativo 75/92, era o fim das conversações com técnicos e o elevar da “negociação para um patamar político, só a nível de secretários de Estado e ministro”, que sublinha: “Antes, com o ministro do Planeamento Valente de Oliveira, havia a intenção de municipalização das políticas sociais, ao que, “em nome da Direção, disse logo, contra a municipalização marchar, marchar!”.
REDE SOCIAL
O padre José Maia recorda que houve uma sequência de passos que conduziram à elaboração do Pacto de Cooperação para a Solidariedade Social, como o referido despacho e a criação da Rede Social, que trouxe nova investida dos defensores da municipalização da ação social.
“A Rede Social era o instrumento que foi criado para regular quem faz o quê. Em tudo sempre manifestámos abertura para que toda a gente pudesse dar, mas cada um sabendo qual era o seu espaço. Nunca renunciando nós à autonomia e à identidade das IPSS, que é a solidariedade”, argumenta, recordando de seguida a questão em que se queria colocar à frente das estruturas da Rede Social os autarcas: “Isso é que era bom! Não aceitei, tivemos ali hora e meia e nunca houve cedência nesse ponto. E disse-lhes, ‘quando muito quem preside, em princípio, é o presidente da Junta na Comissão Social de Freguesia e o presidente da Câmara no CLAS’. E quando veio a primeira versão do documento para (eu) assinar, tinham tirado o «em princípio». Obviamente, opus-me, mas depois corrigiram e colocaram novamente o «em princípio»”.
Foi numa Assembleia Geral, em Fátima, que a UIPSS/CNIS propôs “que se fizesse um Pacto de Cooperação para a Solidariedade Social”, que, ainda segundo o padre José Maia, “pretendia acolher aquilo que andava no ar, ou seja, se há muita gente a querer fazer bem, não seja por isso que não o fará, então, vamos a isso e vamos definir o que é que faz cada um”.
O então presidente da União recorda que “logo nessa altura houve quem quisesse fazer um estudo para ver o impacto financeiro das IPSS”, ao que se disponibilizou para fornecer alguns dados, mas: “Disse sempre que me estava a marimbar para o impacto financeiro, porque nós somos solidariedade e nem a pinta do «i» nos tiram. Sempre chutei a economia, nós somos da solidariedade. A economia é noutra porta”.
E o padre José Maia refere ainda outra questão, que reconhece não ser valorizada por muitos, mas que é “muito importante”. Refere-se ao articulado da Constituição da República Portuguesa que, na revisão de 1997, consagrou que “o Estado apoia” o Setor Solidário, “o que é um compromisso de financiamento”.
“Temos em sede de Constituição o compromisso de financiamento do Estado. Ou seja, não depende dos Governos, é obrigação constitucional. É certo que cada um pode interpretar à sua maneira, mas o compromisso de apoiar financeiramente está na Constituição”, assevera o padre José Maia, lembrando que na altura havia “uma grande intencionalidade em defender a identidade e autonomia das IPSS”.
Para o antigo responsável pela UIPSS/CNIS, que muitas batalhas travou pela afirmação das IPSS, “houve uma série de medidas que pretenderam acautelar o Setor, que é único na Europa”, acrescentando: “Não há nenhum outro Estado na Europa em que haja uma concertação entre o Estado e as IPSS para que exista o subsistema da ação social na Segurança Social. E essa ação social foi contratualizada com as IPSS”.
E para tal foi necessário arranjar quadros normativos, “porque a guerra ideológica era muita, havia muita tentação e, nesse aspeto, o então Primeiro-ministro Engenheiro Guterres foi um aliado e o Pacto constituiu uma defesa para as IPSS”.
Porém, as ameaças de que o Setor Social Solidário tem sido alvo, não surpreendem o antigo presidente da UIPSS/CNIS.
“Depois houve um tempo em que toda a gente continuou a pressionar e admito que se possa, por motivos vários, ter caído naquilo que era a Economia Social, que, como costumava dizer, era um albergue espanhol, mas muito pior, porque as IPSS vão cair num caldeirão de que nunca mais se safam”, afirma, defendendo: “Durante bastante tempo houve a tentação de nos meterem na economia, mas sempre defendi que somos da solidariedade”.
A estre propósito recorda o episódio da tentativa de revisão do Decreto-lei nº 119/83 e que esbarrou na questão de se saber qual a tutela da UIPSS: “Não aceitei, porque a tutela só existe em órgãos da mesma natureza e nós não somos públicos. Naquela altura sabíamos o que queríamos e tínhamos o aval político do ministro Silva Peneda, que foi um grande aliado nesta coisa da autonomia. E foi nessa altura que a então UIPSS quis uma cadeira no Conselho Económico e Social”.
É da sucessão destas situações e clarificações que resulta o Pacto de Cooperação para a Solidariedade Social, que apesar de todas as ameaças, continua a balizar quem faz o quê na ação social no País.
“Aquele foi um tempo em que houve que fazer esta defesa para clarificar as situações. Era necessário porque a partir do momento em que não se clarificam as coisas pode vir uma tormenta ideológica, como a de agora, que é completamente desfavorável ao Setor Solidário, pelo que há que estar com muita atenção para prevenir a estatização da solidariedade”, defende o padre José Maia, deixando uma crítica: “Toda a gente quer lugares para pôr o pessoal político e é preciso incluir na listagem do pessoal a quem se dá benesses as IPSS, que é um universo grande. É uma ideia pragmática, até os percebo, mas não pode ser”.
Para o antigo presidente da UIPSS/CNIS, “o Estado pode mudar de políticas, pode dizer que acabou o tempo em que contratualiza a ação social com as IPSS, através de um ato administrativo e os sinais que dá é que o quer fazer”; porém, “se se cai na tentação de pegar nas instituições e fazer delas e prepará-las no conceito de terem que gerar receitas para a sua atividade, isso é outra conversa, é outra coisa, que não solidariedade”.
MENSAGEM DE FERRO RODRIGUES
Apesar de a sua assinatura não constar do documento, o então ministro da Segurança Social, Eduardo Ferro Rodrigues, foi um dos protagonistas na elaboração do documento e deixou uma mensagem ao SOLIDARIEDADE, por ocasião do 20º aniversário do Pacto de Cooperação para a Solidariedade Social.
“A assinatura do Pacto de Cooperação para o Setor Solidário já faz 20 anos.
O Setor Solidário tem um papel estratégico na vida do País, na sua complementaridade com o setor público e o setor privado.
É assim em todas as economias sociais de mercado que temos como referência na Europa.
Quando cheguei ao Ministério da Solidariedade Social em 1995 a severidade da pobreza em Portugal era gritante e tínhamos poucos instrumentos eficazes para reduzir o impacto deste drama social.
Foi preciso lançar no terreno, com vontade política e sentido da urgência social, uma nova geração de políticas sociais orientada para quem mais precisa.
O Rendimento Mínimo Garantido foi o primeiro exemplo de muitas outras medidas que tiveram concretização posterior, como o Complemento Solidário para Idosos.
Sempre entendi que a eficácia de uma medida social desta dimensão teria de assentar no forte contributo do Setor Solidário.
Tive na altura a colaboração de uma equipa fantástica, em que estavam Rui Cunha, Paulo Pedroso e Vieira da Silva. Contei ainda com a União das Misericórdias e o padre Vítor Melícias. E tive na Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade e na pessoa do seu presidente à época, o padre José Maia, um excelente interlocutor para, juntos, transformarmos Portugal numa sociedade mais justa, inclusiva e solidária.
As instituições de solidariedade social são um grande movimento da sociedade civil com um conhecimento real da vida das pessoas e das comunidades em que atuam”, escreveu o atual Presidente da Assembleia da República.
Também o atual presidente da CNIS, padre Lino Maia evocou a data no seu editorial de dezembro no jornal SOLIDARIEDADE e que pode ler aqui.
Pedro Vasco Oliveira (texto)
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