Criada em 1973, como tantas outras por Portugal de norte a sul, a Casa do Povo de Santa Cruz de Alvarenga ganhou o estatuto de IPSS no ano de 2009, ano em que decidiu abraçar um projeto de solidariedade social. Com a construção de uma ERPI veio também uma creche e para combater a falta de crianças a instituição deu prioridade na admissão de pessoal a mulheres grávidas ou com intenção de ficarem. Resultado, após bastante tempo inativa, a creche está em funcionamento há já dois anos.
“A freguesia já estava a ficar deserta de jovens e a partir de certa altura vimos que também os mais velhos estavam a deixar a freguesia. Com os mais jovens a viverem e a trabalharem fora, no Porto, em Lisboa e noutras cidades, inclusive no estrangeiro, quando os pais ficavam mais velhos e necessitados de apoio, os filhos vinham buscá-los para os colocar em instituições perto deles”, conta Edgar Soares, presidente da Casa do Povo de Santa Cruz de Alvarenga, concelho de Arouca, relatando o que esteve na génese da nova vida da instituição: “No fundo sofríamos da desertificação dos novos e dos velhos e como não há crianças qualquer dia isto passava a ser uma reserva natural. Então, mobilizámo-nos para tentar fixar os nossos idosos, até porque depois de uma vida inteira aqui na freguesia emigrar no fim da vida não era o melhor para eles. Não emigraram quando eram novos, não era agora no fim da vida que o tinham que fazer para morrer fora da terra que os viu nascer. Então, a ideia foi tentar contrariar essa situação”.
É assim que a Casa do Povo se reinventa e aposta na construção de uma Estrutura Residencial Para Idosos.
Este é um processo que ficará concluído em 2011, com a inauguração das novas instalações, que fazem hoje da Casa do Povo uma “instituição de referência”.
Antes do erigido o novo edifício, a instituição tinha apenas a resposta social de SAD e fazia ainda distribuição de alimentos, via Banco Alimentar, a cerca de 37 famílias. Com a construção das novas instalações são, então, criadas as respostas de ERPI e Creche.
Aliás, a creche tem uma história bastante curiosa e que deixará muitos responsáveis por instituições e, especialmente, empresas corados de vergonha.
Perante a falta de crianças na freguesia, que atrasou a entrada em funcionamento da creche em cerca de quatro anos, e em fase de contratação de pessoal para a ERPI, os responsáveis pela Casa do Povo deram prioridade na admissão a mulheres grávidas ou com intenção de ser mães no futuro próximo. No final, metade das crianças que hoje frequenta a creche são filhas de funcionárias.
“A creche só começou a funcionar há dois anos, porque não tínhamos crianças. Uma das particularidades que temos foi quando começámos a admitir pessoal auxiliar para a ERPI termos dado prioridade às grávidas, o que até causou alguma estranheza a muita gente. O certo é que hoje cerca de metade das crianças que estão na creche são filhas de funcionárias. E se não fosse a creche, provavelmente, elas teriam dificuldade em estar a trabalhar, pois não tinham resposta para os filhos. Foi uma mais-valia reconhecida por toda a gente”, sublinha Edgar Soares.
Este bom resultado não faz esquecer as dificuldades iniciais.
“A história da nossa entrada na ação social foi um bocado conturbada, porque, no fundo, fomos empurrados para um projeto, através do PARES, em que nos disseram que seríamos comparticipados até 70%. Na altura reunimos uma série de pessoas, conversámos com a anterior Direção da Casa do Povo para saber da disponibilidade para serem eles a promover a situação, auscultámos todas as forças vivas da freguesia e ficou um grupo de pessoas que decidiu avançar com o projeto”, conta.
Até aqui tudo bem, mas… “A Câmara Municipal também nos entusiasmou a avançar, prometendo apoio, e nós fizemo-lo. Na altura foi-nos dito que se construíssemos uma creche o projeto teria uma melhor avaliação e mais probabilidades de ser aprovado. O certo é que, a certa altura, o PARES foi um desastre. Primeiro, tínhamos apenas 30 dias para apresentar a candidatura e elaborámos um projeto em tempo recorde, que nos saiu bastante caro. Quando apresentámos o projeto, que era da ordem dos 1,7 milhões de euros, disseram-nos que não tínhamos hipóteses porque era um projeto megalómano e seria difícil chegar aos 70% de comparticipação. Resumindo, aquilo foi baixando até que ficou na comparticipação até 55%. A esta altura, reunimos toda a gente para ver da viabilidade do projeto, mas voltámos a entusiasmar-nos e decidimos avançar e ver o que dava”, recorda o presidente da instituição, afirmando com orgulho que “era a obra mais emblemática no concelho, havia mais três ou quatro no âmbito do PARES, mas esta era a que oferecia mais dúvidas, por ser a mais volumosa e de maior compromisso, o certo é que foi a primeira a ser inaugurada”.
Para obstar às dificuldades de financiamento, a instituição recorreu a um empréstimo bancário de 300 mil euros e a diversos mecenas.
“O que mais nos magoou foi a constatação que o nosso Estado Social vê os lares como armazéns. O que era comparticipável era tudo o que dizia respeito ao armazém, tudo o que tem que ver com conforto e bem-estar das pessoas não tinha direito a comparticipação. Isso chocou-nos, porque não estávamos preparados para levar esse murro no estomago. A partir daí fomos aprendendo que afinal havia muita parra e pouca uva, ou seja, a solidariedade social está doente e a Segurança Social enferma de muita coisa”, lamenta, deixando uma crítica: “As instituições ricas estão cada vez mais ricas e as pobres estão cada vez mais pobres. E com o tempo fomos aprendendo. Depois há uma panóplia de legislação, de fiscalizações, deveres, deveres, deveres e nós, voluntários por opção e por ideais nobres, decidimos carregar essa cruz para que o projeto não caísse e chegasse a bom porto, como chegou e neste momento está em velocidade cruzeiro”.
Neste prisma, Edgar Soares deixa ainda mais uma crítica ao sistema: “Se olhássemos aos rácios de pessoal, a Casa do Povo devia ter cerca de 20 funcionários, mas temos 40, ou seja, metade destes trabalhadores são para o conforto e bem-estar das pessoas que aqui estão. Por exemplo, temos duas enfermeiras a tempo inteiro, duas fisioterapeutas, um professor de educação física, entre outros. Temos quase uma unidade de cuidados continuados a funcionar, porque para aqueles que estão acamados é fundamental ter mais funcionários para lhes poder prestar os melhores cuidados”.
Como é natural todas estas questões implicam com as contas da instituição, mesmo assim, Edgar Soares está satisfeito e projeta o futuro.
“Neste momento, estamos a pagar o empréstimo ao banco. Estamos também a pagar o projeto de aquecimento através de geotermia, que ficou em mais de 200 mil euros, e que foi através da ADRIMAG. Resumindo, o projeto ficou em cerca de 2,5 milhões de euros. Promovemos eventos para angariar fundos, tivemos ofertas de pinturas para vender, alguns benfeitores ajudaram bastante e graças a estes mecenas e aos muitos sócios conseguimos estabilizar a situação financeira e estamos em viagem de cruzeiro. Financeiramente estamos com sustentabilidade”, assegura, revelando: “De tal forma que ganhámos apetite, também em função das necessidades que vamos identificando, para estarmos dispostos a avançar para uma Unidade de Cuidados Continuados Integrados (UCCI) para tentar ir de encontro às grandes necessidades das pessoas que estão em situações completamente debilitadas em termos de saúde. Neste momento já temos equipamentos médicos muito equiparados a uma clínica, só não temos, infelizmente, o apoio da Administração Regional de Saúde”.
Apesar do feedback que vão tendo de outras instituições é para não avançarem para uma unidade de curta e média duração, “porque é um desastre”.
“O que outras instituições que têm UCCI nos dizem é que não há dinheiro, que o Estado não paga, a não ser que tenha 30 quartos para ser sustentável”, conta, adiantando que o projeto é para 20 quartos duplos e quatro individuais.
Porém, “o que mais me espanta é que temos o terreno comprado, a planta aprovada na Câmara desde 2016 e não encontramos nenhum programa comunitário a que possamos concorrer para financiar a obra, minimizando o nosso investimento inicial”, lamenta.
As desconfianças são muitas, mas Edgar Soares considera ser uma mais-valia a construção da UCCI de curta e média duração.
“Ainda ninguém me disse que é uma boa ideia construir uma UCCI aqui em Alvarenga, dizem-me sempre que faço mal porque depois não me pagam. Está provado que precisamos dela, mas dizem-me que não há dinheiro. Desde as cúpulas dos serviços do Estado a outros dirigentes de instituições, todos me dizem que não há dinheiro”, afirma, acrescentando: “A CNIS como parceiro do Estado devia ter alguma ação em termos de ratear os meios disponíveis de forma a que eles pudessem chegar a todo o lado. É óbvio que quem está como nós, em regime de voluntariado e de boa vontade, não visa o lucro, nem quer ter um fundo de maneio para mandar vir o Papa, o que quer são todas as verbas que possa angariar para aplicar no bem-estar e conforto das pessoas que tem na instituição”.
Por outro lado, Edgar Soares mostra-se bastante crítico com o facto de não haver discriminação positiva no tratamento das instituições, reprovando o facto de as entidades públicas tratarem por igual o que é diferente.
“Já disse isto várias vezes e repito: a maior injustiça que se pode fazer a uma pessoa ou a uma instituição é tratar de igual modo aquilo que é diferente. Nós somos uma instituição do interior, o nosso tipo de utente não é urbano, é rural. Ora o rendimento do utente urbano é diferente do do rural. A facilidade de se chegar a esses utentes é maior do que a de chegar aos utentes rurais, por exemplo, no caso do SAD”, sublinha, exemplificando: “Diz a lei que os nossos utentes têm o direito a ser assistidos pelo SNS, mas o médico só vai ao posto médico de Alvarenga duas vezes por semana. Nós estamos a 25 quilómetros da Unidade de Saúde de Arouca, uma estrada com muitas curvas, e a 65 quilómetros do Hospital de Santa Maria da Feira. Se um utente tiver um problema qualquer e for ao posto médico quando o médico lá está este não o atende sem primeiro ser feita a inscrição e se houver vaga para uma consulta. Entretanto, tenho lá um médico voluntário na instituição que não pode passar receitas, nem pedir meios de diagnóstico, porque têm que ser os médicos do SNS. Se for um caso mais urgente, dizem-nos para o levar ao Hospital… a 65 quilómetros. Para além disto, ainda há os constrangimentos com o transporte e o número de funcionários que são necessários apenas para levar um utente ao Centro de Saúde a Arouca, a que se soma longos períodos de espera. Isto já para não falar se tiver que ir ao Hospital da Feira”.
Agastado, Edgar Soares lembra que “tudo isto ficaria resolvido se o médico da instituição pudesse receitar e solicitar meios de diagnósticos ou se facilitassem a vida às instituições”, deixando mais um exemplo: “A ERPI da Misericórdia de Arouca, instituição que tem um hospital, está a 500 metros do Centro de Saúde, ou seja, não tem despesas, mas recebemos o mesmo que a Misericórdia, inclusive da Câmara. A Câmara tem distribuído e bem o dinheiro dos parcómetros, mas é igual para todos. Lá está, é tratar de igual modo aquilo que é diferente”.
Estas situações criam algum desconforto nos dirigentes, no entanto baixar os braços está fora de questão.
“Tudo isto nos cria momentos de desânimo, de mágoa, de angústia e de tristeza e muitas vezes apetece bater com a porta, mas não o fazemos por respeito a quem está na instituição”, afirma, ironizando com uma situação sucedida na ERPI: “Temos dois utentes em estado vegetativo que não faz sentido nenhum estarem numa ERPI. Temos lá diversas pessoas com a doença de Alzheimer e, entretanto, foi lá uma junta médica que os deu como aptos para o trabalho. Estava capaz de um dia pegar neles e ir inscrevê-los ao centro de emprego! Isto não faz sentido”.
Edgar Soares está ciente que há mais instituições a queixar-se de situações como estas, mas é com orgulho que afirma a qualidade da Casa do Povo de Santa Cruz de Alvarenga: “Infelizmente, não somos só nós a queixarmo-nos, o certo é que temos uma instituição de referência, com várias visitas de delegações de diversos países. Temos uma casa que nos orgulha”.
E como seria Alvarenga sem a Casa do Povo?
“Seria uma terra muito mais pobre, porque a Casa do Povo é o maior empregador da freguesia. A escola do ensino básico estava para fechar e já não está nesse risco e os mais velhos deixaram de ter que migrar no fim da vida. A freguesia neste momento estabilizou e criou uma estabilidade económica que permite que as pessoas se fixem por cá”, diz Edgar Soares com visível satisfação.
Atualmente, a instituição apoio 20 idosos através do SAD e 58 em ERPI, acolhe 14 crianças em creche e emprega 40 funcionários.
Pedro Vasco Oliveira (texto e fotos)
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