CONFEDERAÇÃO PORTUGUESA DE ECONOMIA SOCIAL

Nascimento de uma organização impensável há pouco mais de um ano

Séculos de história carregam as diferentes famílias da Economia Social em Portugal, longo período de tempo em que a maioria viveu de costas voltadas. Questões ideológicas e doutrinárias, mas também outras de ordem mais prática, impediram até há pouco mais de um ano que as oito entidades mais representativas do setor se entendessem de forma a criar uma organização em que todas tivessem espaço sem se anularem ou diluírem. O primeiro passo foi dado no final de 2016, seguiu-se um processo de um ano de diálogo e debate, com a realização do I Congresso Nacional e de várias reuniões do grupo de trabalho criado no âmbito do CNES, e, agora, dia 2 de maio a Confederação Portuguesa de Economia Social vai nascer formalmente.
É já no próximo dia 2 de maio que se realiza a assembleia constitutiva da Confederação Portuguesa de Economia Social (CPES), primeiro passo para a efetiva criação da mesma, depois de assinada a Carta de Compromisso, no encerramento da sessão final do I Congresso Nacional da Economia Social, que decorreu, a 14 de novembro de 2017, no grande auditório do ISCTE-IUL, em Lisboa.
Eduardo Graça, presidente da Cooperativa António Sérgio para a Economia Social (CASES), considera o processo de criação da CPES “um avanço histórico” e “o acontecimento mais importante para a Economia Social desde a consagração constitucional em 1976”, ainda e apenas como setor cooperativo e só mais tarde (1989) alterado para cooperativo e social.
E talvez logo aqui se encontre uma das principais razões para que entidades seculares, que laboram no mesmo contexto social e económico, só agora olhem mais para o que as une do que para o que as divide e deem o passo decisivo para unirem esforços.
Uma certa clivagem ideológica tem marcado ao longo dos tempos a convivência entre as diferentes organizações da Economia Social, famílias muito diferentes, mas que têm em comum serem “de pessoas para as pessoas e com as pessoas”, como é afirmado no texto introdutório das Recomendações saídas do I Congresso Nacional da Economia Social, um documento que servirá de base ao trabalho a desenvolver pela novel Confederação.
Esta divergência doutrinária foi evidenciada pelo Professor Rui Namorado na sua intervenção na sessão final do Congresso, quando sublinhou os dois tipos de perspetivas que “impregnam, com intensidades diversas e instáveis, a vida das várias constelações constitutivas da grande galáxia da Economia Social”.
Assim, para uma dessas correntes de pensamento, “a Economia Social é uma dinâmica sócio-organizativa que funciona nas sociedades atuais, principalmente, como um dispositivo compensatório dirigido a minorar os sofrimentos das pessoas e a atenuar os efeitos de outras externalidades negativas, geradas pelo sistema vigente, o capitalismo”, afirmou, explicando ainda que “visa um equilíbrio tão humanizante quanto possível das sociedades atuais, mas não põe em causa a sua natureza, aceitando implicitamente contribuir indiretamente para sua perenidade ou sendo-lhe indiferente que isso aconteça”. Ou seja, “preocupa-se em atenuar os malefícios da sociedade tal como ela existe, mas não inscreve a sua transformação qualitativa entre as suas preocupações”.
Já para a outra grande linha de força, segundo Rui Namorado, “a Economia Social, além desse mesmo tipo de resposta no imediato a problemas concretos, incorpora uma ambição transformadora da sociedade que aponta para um pós-capitalismo” e, “embora ciente da sua subalternidade num contexto capitalista, resiste-lhe impregnando-se de uma vontade de mudança qualitativa do tipo de sociedade em que vivemos”. Ou seja, “ciente de que as sociedades, como contextos de vida, só sobrevivem historicamente na medida em que passarem pelas metamorfoses de que necessitam para evoluírem qualitativamente, a Economia Social assume-se como parte de uma metamorfose que nos permita um futuro consentâneo com os seus valores”.
Para o especialista em Economia Social e professor na Universidade de Coimbra, “as narrativas correspondentes às duas grandes linhas de orientação quanto à Economia Social são multifacetadas e complexas, estando ainda em larga medida em construção”. Pelo que, “se quisermos encontrar-lhes consonâncias predominantes, poderemos dizer que a primeira se harmoniza melhor com a doutrina social cristã e a segunda se pode incorporar melhor na doutrina socialista encarada globalmente”.
Também Eduardo Graça, em declarações ao SOLIDARIEDADE, constatou a influência que estas duas grandes correntes de pensamento e atuação exercem nas organizações da Economia Social em Portugal.
“No fundo, [a criação da CPES] comporta uma aliança, não explícita mas real, entre a tradição do associativismo livre, que vem do período da Revolução Industrial, com as práticas das entidades da Igreja Católica, que vêm de muito antes desse período”.
E, para o presidente da CASES, “era necessário que fosse assumida esta aliança para que pudesse ser criada esta confederação” e, “embora isto nunca seja discutido de uma forma explícita, nunca foi um assunto em cima da mesa, na realidade, conhecendo-se a história do movimento da Economia Social, estas duas grandes correntes existem e se elas e os seus protagonistas não se pusessem de acordo não seria possível criar uma entidade confederal desta natureza”.
Portanto, pôr de lado as ideologias, sair das trincheiras e unir esforços em prol de todos e do que as une foi, talvez, o passo mais determinante dado pelas organizações mais representativas das diferentes famílias da Economia Social: Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade (CNIS), Confederação Cooperativa Portuguesa (Confecoop), Animar (Associação Portuguesa para o Desenvolvimento Local), União das Misericórdias Portuguesas (UMP), União das Mutualidades Portuguesas (UMP), Confederação Nacional das Cooperativas Agrícolas e do Crédito Agrícola de Portugal (Confagri), Centro Português de Fundações (CPF), Confederação Portuguesa das Colectividades de Cultura, Recreio e Desporto (CPCCRD).

DEBATE INTENSO

A esta situação junta-se ainda a criação, em 2011, do Conselho Nacional da Economia Social (CNES), como órgão de consulta do Governo, e a publicação da Lei de Bases da Economia Social (LBES), que aconteceu em 2013.
Externamente, a União Europeia começa a prestar mais atenção à Economia Social e a criar programas específicos para o setor, numa aposta clara para desenvolver o setor em todos os Estados-membros.
Determinante foi a decisão tomada em sede do Conselho Nacional da Economia Social de realizar o primeiro Congresso Nacional do setor, ideia lançada de forma mais objetiva no encontro multidisciplinar «Portugal Economia Social – Encontro do Empreendedorismo e Inovação Social», que, em Lisboa, reuniu ao longo de três dias muitos dos atores do setor.
Da enorme partilha de experiências e dos inúmeros debates, a ideia de que a diversidade não tem que ser um obstáculo foi transversal e sublinhada e este parece ter sido um importante catalisador para o processo que, logo no ano seguinte, tomou forma e está prestes a ser materializado.
Fundamental para que as diferentes famílias avançassem para um patamar onde nunca tinham estado foi o debate franco e aberto, olhos nos olhos, em que o que as une foi sobrevalorizado face ao que as divide, num espírito colaborativo e voluntarioso.
“Há objetivos considerados impossíveis que são possíveis e, por vezes, não é preciso muito tempo para que sejam concretizados. Destaco o papel bastante importante dos dirigentes das entidades da Economia Social que estiveram presentes e muitos ativos em todo o processo e o papel do ministro Vieira da Silva, sempre de incentivo para que a Confederação pudesse a vir a ser criada”, sublinha Eduardo Graça, acrescentando: “Não tenho dúvida da existência de uma vontade sincera e autêntica por parte dos dirigentes das entidades para concretizar este projeto, que vai ter as suas dificuldades, contradições e problemas, como todo os projetos relevantes têm, mas no essencial existe uma reserva de vontade autêntica para que seja concretizado. Agora é preciso construi-la, outra batalha que vai começar e que não é fácil, pois é uma tarefa complexa e difícil”.
Especial importância na criação das dinâmicas de diálogo e de debate entre as diferentes entidades foi o formato encontrado para realizar o Congresso Nacional, com quatro sessões temáticas preparatórias e uma sessão final, e uma série vasta de reuniões dos membros do Conselho Nacional da Economia Social, no âmbito da Comissão Organizadora do Congresso.
“O processo que decorreu ao longo de todo o ano de 2017, foi virtuoso porque se aproximou daquilo que se apelida por brainstorming entre os dirigentes, aos mais diferentes níveis, de todas as entidades da Economia Social. Foi possível fazer um debate aprofundado sobre um conjunto de temas decisivos para o futuro deste setor e, ao mesmo tempo, os dirigentes puderam confrontar-se com as contradições e com um conjunto de espetos que ao longo dos últimos muitos anos não tinham sido debatidos de forma tão aprofundada e em comum. Este processo do Congresso, através de sessões temáticas, e as sucessivas reuniões, em número significativo ao longo do ano, contribuíram para esta aproximação e para fomentar um espírito em que a partilha e a colaboração ultrapassaram as diferenças e o conflito, que poderá sempre surgir quando estamos perante entidades que têm histórias diferentes e objetivos com aspetos diferentes”, sustenta o presidente da CASES, entidade que apoiou e acompanhou todo o processo.
No fundo, parece que estamos num tempo em que os astros se alinharam, conjugando de forma perfeita a legislação, o ambiente político – não só interno, pelo incentivo ministerial, mas também externo, com a aposta da União Europeia no desenvolvimento da Economia Social europeia – e a perspetiva das organizações face ao todo da Economia Social.
Para Eduardo Graça, “houve uma assunção da necessidade de esbater as diferenças, embora mantendo a autonomia e a especificidade de cada uma das entidades, em favor de uma reunião em torno daquilo que são os pontos comuns das diversas confederações”.
Aliás, a questão da autonomia das diversas entidades no interior da CESP foi um tema que suscitou grande debate, tendo o assunto percorrido um longo caminho até ao ponto que ficou plasmado no projeto de estatutos aprovados por todas as entidades.
A CNIS, apesar de sempre se ter mostrado aberta e favorável ao debate, foi, dentre as oito entidades participantes no processo, a organização que mais reservas colocou no início do processo, questionando a rapidez e o modelo que se queria seguir.
Para a maior representante das IPSS a nível nacional, não estava em causa aprofundar o relacionamento entre as organizações representativas da Economia Social, mas considerava haver passos a dar primeiro “antes de se mudarem todas para debaixo do mesmo teto”.
Em particular, os dirigentes da CNIS questionavam a importação do modelo espanhol, uma vez que a realidade portuguesa tem particularidades que a distinguem bastante da do país vizinho, nomeadamente a especificidade do Setor Social Solidário, algo que não tem correspondência em qualquer outro país europeu.
No entanto, com o decorrer das reuniões, do diálogo e do debate, o consenso foi alcançado, como sublinhou o presidente da CNIS, padre Lino Maia, no Editorial de abril 2018 no jornal Solidariedade: “(…) as várias entidades representativas da Economia Social de âmbito nacional assumiram a importância da valorização do papel de cada uma e de todas na economia e na sociedade portuguesa. Consensualizaram também que o reforço do setor no plano institucional, legal e organizacional só será capazmente concretizado através da congregação de esforços para a criação de uma estrutura comum, de natureza confederativa. Concordaram, finalmente que, respeitando a autonomia, a independência e o espaço próprio de intervenção de cada entidade, essa estrutura comum a criar assuma como sua missão a promoção e a defesa da Economia Social, como um setor específico, designadamente como parceiro social, na concertação, na definição das políticas públicas e nas orientações estratégicas destinadas à Economia Social”.
Neste sentido, Eduardo Graça olha para o caminho feito e aponta duas grandes razões para que, finalmente, o consenso entre as diferentes famílias da Economia Social seja uma realidade: “Do meu ponto de vista, é um impulso que tem, simultaneamente, um instinto de defesa e a perceção da necessidade de unir forças para modernizar o setor. Poria em pé de igualdade estas duas perceções, a da necessidade de defesa dos ataques externos e a da necessidade interna de ganhar força, dinâmicas, dimensão e massa crítica para desenvolver um conjunto de medidas internas ao setor, moduladas consoante as diversas organizações, para que se modernize, se profissionalize, para que possa adotar modelos de gestão que lhes permitam realizar a sua missão, que está inscrita na Constituição e na lei”.
Importante para o consenso entre as diversas entidades, depois de décadas de costas voltadas, foi igualmente o modelo de representatividade no seio da nova organização, ou seja, uma organização um voto, e ainda a criação de um modelo organizativo próprio e que refletisse a realidade nacional e não a simples importação do modelo espanhol.
“Houve uma inspiração que veio da experiência espanhola, que assenta em 20 anos da sua confederação, sabendo-se que as realidades são diferentes. Com essa inspiração, também foi possível fazer um caminho em que o modelo adotado corresponde à realidade das nossas entidades”.
Por outro lado, com a publicação da Conta Satélite da Economia Social 2013, elaborada pela CASES e o INE (Instituto Nacional de Estatística), houve uma melhor consciencialização, agora fundamentada em dados estatísticos, da grande importância do setor na economia e na sociedade em Portugal.
“A Conta Satélite é um instrumento que desempenhou um papel muito relevante. Já não por estudos empíricos parcelares ou por opiniões subjetivas dos dirigentes, mas através de um instrumento estatístico, ainda por cima oficial, e objetivo, é possível medir o peso do setor na economia e na sociedade”, destaca o presidente da CASES.

CONCERTAÇÃO SOCIAL É OBJETIVO

E se as evidências da Conta Satélite serviram, num primeiro momento, para ajudar a desbloquear o diálogo entre as organizações para a criação da confederação, no futuro elas servirão para sustentar e potenciar as ambições e reivindicações do setor.
Como grandes objetivos, a CPES pretende reforçar o reconhecimento da Economia Social no seio da sociedade e junto dos poderes públicos, ao mesmo tempo que ambiciona conseguir um lugar na Concertação Social. Por outro lado, chegar a fundos europeus que cada uma das organizações de per si não terá condições para se candidatar e, ainda, criar uma dinâmica comunicacional mais eficaz e afirmativa.
Este último aspeto é algo essencial para afirmar o setor, que nos últimos tempos tem sido alvo de diversos ataques, promovidos por razões ideológicas, mas também porque este é um setor altamente apetecível.
No entender do presidente da CASES, “resume-se tudo num grande objetivo que é reforçar o reconhecimento público do setor, quer junto dos poderes públicos quer da sociedade, ou seja, fazer corresponder à consagração legal ao mais alto nível que tem em Portugal, o que não é comum nos diversos países europeus, o reconhecimento público”.
Já quanto ao desejo de aceder à Concertação Social, para Eduardo Graça, o que hoje parece ser uma impossibilidade pode, entretanto, deixar de o ser, tal como até há pouco tempo parecia ser impossível a comunhão de todas estas entidades no seio de uma única organização sem a tutela do Estado.
“Todas as conquistas, geralmente, são consideradas impossíveis antes de serem alcançadas. Esta questão da Confederação há pouco tempo era considerada impossível, inviável, idealista pela grande maioria das pessoas, mesmo pelas que estão envolvidas na sua criação. É uma questão objetiva, no entanto é possível. Agora vão colocar-se outras questões. Vai colocar-se a questão de aceder à Concertação Social ao mais alto nível, que hoje é considerada uma tarefa praticamente impossível, mas eu quero crer que é possível. Se os dirigentes da CPES trabalharem de uma forma adequada e correta no processo para alcançar esse objetivo e outros pode ser possível”, sustenta o presidente da CASES, que defende que a organização que lidera agora sai de cena deste processo, mas “apoiará no que estiver em coerência com os seus estatutos e no que for necessário”.
Ultrapassado o grande e principal obstáculo, que foi sentar à volta da mesa as oito famílias mais representativas da Economia Social em Portugal, promover o diálogo e o debate entre todas, num processo em que foram relevados os pontos em comum – “Assumpção de responsabilidades, quer individuais quer coletivas; Autonomia de gestão; Coesão social e territorial; Combate à exclusão social; Inserção no tecido social; Participação; Primado das pessoas; Promoção de espaços de realização individual; Respeito pela dimensão humana”, como sintetizou o padre Lino Maia, no referido Editorial de abril 2018 – em desfavor do muito que as diferencia, o futuro próximo vai ser determinante para a consolidação e afirmação da Confederação Portuguesa de Economia Social, cujo primeiro passo é dado com a constituição formal e legal da mesma já dia 2 de maio.

Pedro Vasco Oliveira (texto e fotos)

 

Data de introdução: 2018-04-30



















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