HENRIQUE RODRIGUES

Votos de boa saúde!

1 - As questões ligadas à Saúde Pública teimam em não abandonar o centro do debate da actualidade política, polarizadas em volta de dois tópicos essenciais: a discussão, em sede parlamentar, das diversas propostas de Lei de Bases da Saúde e a continuação, nos mesmos moldes cirúrgicos, da greve dos enfermeiros.

(Há e tem havido outras greves no sector da Saúde, como as dos médicos e dos técnicos de diagnóstico e terapêutica, mas a greve dos enfermeiros, por várias idiossincrasias que a têm marcado, alcandoraram-na ao lugar cimeiro das preocupações do País.)

Já aqui tive ocasião de escrever sobre ambos os temas, mas, nos tempos mais recentes, designadamente durante o último mês, as duas principais personalidades da vida pública portuguesa, o mesmo é dizer, o Presidente da República e o Primeiro-Ministro, vieram a terreiro, vieram à liça, com posições públicas atípicas, cada um sobre cada qual dos dois referidos temas.

É essa participação atípica – e atópica – que merece o regresso a algumas digressões sobre o assunto nesta crónica, logo no mês seguinte a uma outra em que tratei da Lei de Bases.

Comecemos por ordem de importância constitucional – logo, pelo Presidente da República, que entendeu lançar um aviso público aos partidos parlamentares, prevenindo que a promulgação presidencial da Lei de Bases da Saúde exigiria a sua aprovação na Assembleia da República por uma maioria reforçada, designadamente pelos partidos que costumam revezar-se ao leme da coisa pública: PS e PSD.

Trata-se de uma posição insólita, solitária e ao arrepio do que tem sido a prática presidencial neste domínio.

Como se sabe, sempre que inquirido sobre as suas preferências em relação a projectos ou propostas de diplomas legislativos, o Presidente da República, invariavelmente, tem reafirmado a sua prática de esperar pela entrega do diploma em Belém, para depois se pronunciar sobre ele.

A doutrina presidencial sobre tais procedimentos tem sido, com efeito, a recusa em contaminar o debate partidário com as suas próprias opiniões e de apenas se pronunciar sobre propostas legislativas a final, revestido da autoridade de ser o titular único da competência para promulgar.

Também o Primeiro-Ministro abandonou, episodicamente, o tom cordato, que lhe adveio da sua participação duradoura nos debates da Quadratura do Círculo, para classificar como “greve selvagem” e “greve ilegal” a greve dos enfermeiros.

(Nunca tinha pensado nisto antes … mas, com efeito, é perturbador percebermos que as duas principais figuras da nossa vida pública, Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa, atingiram o grau de notoriedade, que constituiu condição de acesso às funções que hoje desempenham, a partir da sua longeva exposição mediática, televisiva.

Dando assim razão à antevisão feita por Pinto Balsemão, há muitos anos, quanto às virtualidades das televisões em fazerem “vender” aos consumidores qualquer produto – mesmo o Presidente da República.)

 

2 – Como se sabe, existem, como alternativas matriciais, relativamente à Lei de Bases da Saúde, duas propostas: uma, subscrita por alguns elementos do PS, pelo PSD e pelo CDS, a partir do Grupo de Trabalho nomeado pelo Governo, liderado por Maria de Belém Roseira – que poderíamos designar como proposta do “Bloco Central” e que replica, em grande medida, a Lei de Bases actualmente em vigor; outra, elaborada por António Arnaut e João Semedo, apresentada pelo Bloco de Esquerda e que concita o apoio deste partido, do PCP e da outra metade do PS – proposta que proclama a ambição do retorno do SNS à sua feição originária.

Não está aqui em causa saber da minha preferência; já a referi em outras ocasiões.

Do que se trata é da opção de Marcelo Rebelo de Sousa pela proposta apresentada pela sua adversária vencida na corrida presidencial.

(A este propósito, e “a vol d’oiseau”, quase se poderia também aqui ser tentado a uma sobreposição; os socialistas apoiantes de Maria de Belém Roseira na candidatura a Presidente da República são os agora apoiantes da sua proposta de Lei de Bases; e os apoiantes de Sampaio da Nóvoa apoiam a proposta de Arnaut e Semedo.)

A estranheza pela inovação da prática presidencial não reside só na pronúncia preventiva do Presidente e na espécie de pressão sobre o Governo e o Parlamento que suscita.

É que os motivos invocados não colhem.

Marcelo Rebelo de Sousa estriba-se no alegado entendimento de que leis com a importância da Lei de Bases da Saúde, ou outras estruturantes da nossa vida colectiva, deverão ser objecto de um consenso alargado, de um lado e do outro do espectro partidário, dentre os partidos com possibilidade de acederem ao Governo – a fim de evitar que eventuais mudanças de maiorias políticas, com tradução na formação de Governos, conduzam a revogações ou alterações profundas de tais leis, sempre que o Governo mude de cor.

É que esse fenómeno, pelo menos no que à Lei de Bases da Saúde respeita, simplesmente não se tem verificado.

A actual Lei foi aprovada, em 1990, por uma maioria de direita e alterada em 2002 por uma maioria idêntica – e, quer Guterres, quer José Sócrates, conviveram amenamente com ela quando governaram.

São quase 30 anos em vigor … pelo que se não compreende a motivação de Marcelo para a ameaça que dirigiu directamente aos deputados e ao Governo, sobre maiorias conjunturais.

 

3 – Compreende-se que o chefe do Governo, na sua condição de responsável pelos destinos do País e pela provisão aos cidadãos do leque de direitos constitucionalmente atribuídos – e também os direitos sociais, como o direito à saúde -, se sinta incomodado com os efeitos da greve dos enfermeiros e com os danos que a mesma tem causado a muitos doentes, que têm visto adiadas intervenções cirúrgicas necessárias e já previstas e marcadas.

As greves causam sempre danos a terceiros – seja o patrão clássico, de chapéu de coco, charuto e limousine, sejam os patrões modernos, gestores de topo, disputados pelas empresas estrangeiros (pelo menos, é o que nos dizem para explicar os salários sibaritas que recebem!), sejam os trabalhadores que ficam sem transporte para o emprego, sejam os doentes a quem atrasam os tratamentos …

Nessa medida, percebe-se que o chefe do Executivo, que é o patrão dos trabalhadores da Administração Pública - ainda para mais, diferentemente do que sucede com os demais patrões, eleito por sufrágio universal, e também pelos cidadãos afectados pelas greves nos serviços públicos -, se sinta desconfortável com a greve dos enfermeiros e com o impacto público dela.

Ainda por cima, esta greve é praticamente restrita aos serviços de saúde do Estado.

Claro que o direito à saúde de cada um precede, na ordem dos direitos dos cidadãos, o direito à greve.

Mas existem ambos, todavia.

Assim, se entram em colisão esses dois direitos, o que há a fazer é compatibilizar o exercício simultâneo de um e outro, de forma proporcionada, como manda a lei – e existe lei a mandar isso mesmo.

E alargar os serviços mínimos, ou levar por diante a requisição civil, se houver fundamento.

Ora, o Primeiro Ministro, além de patrão da Administração Pública, é também titular do Poder Executivo e, em certa medida, do Legislativo.

Diferentemente dos outros patrões, pode ele próprio efectuar a requisição civil – se a greve, como ele afiança, for selvagem e ilegal.

O que não pode é classificar a greve como ilegal e selvagem – e ficar quieto.

(… Embora não calado, como sucedeu.)

A não ser que o Governo se prepare para fazer com esta greve o que tem feito com a dos professores: provocando, pela linguagem hostil e pela inércia negocial, de par com os prejuízos e os incómodos efectivos na população, a rejeição generalizada pelos cidadãos das razões desses grupos de trabalhadores, com a finalidade de fazer render essa pose de aparente firmeza.

Render em votos, naturalmente … que é do que todos andarão à procura durante o ano.

 

Henrique Rodrigues – Presidente do Centro Social de Ermesinde

 

Data de introdução: 2019-02-06



















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