1 - Há poucos minutos, ao volante do meu automóvel, o noticiário das 10 h da TSF informava-me de que quatro ou cinco jogadores de uma das principais equipas de futebol nacional se encontravam hipotecados a um credor do respectivo clube.
Claro que, no rigor dos conceitos, a noticia é inexacta: só se constituem hipotecas sobre bens imóveis, ou móveis para esse efeito equiparados, e os jogadores não são bens, nem são imóveis - mesmo o guarda-redes. (É certo que por vezes alguns jogadores mais parecem estátuas do que artistas, mas isso são já outras histórias…).
Sobre bens móveis, como se sabe, o que se constitui como garantia das dívidas não é a hipoteca, mas sim o penhor.
Não foi, porém, a natureza móvel ou imóvel que me perturbou na notícia, mas sim o que a notícia no fundo quis dizer: que vários jogadores tinham sido dados como garantia da dívida, assim os tratando como um bem, susceptível de transacção entre terceiros - o clube e os seus credores.
É igualmente certo que, mesmo nesta perspectiva, falta rigor à notícia: não são exactamente as pessoas físicas dos jogadores que são dadas em hipoteca ou como penhor.
O que é dado como garantia é uma coisa chamada o "passe".
O "passe" é uma espécie de título de propriedade, ou de substituto do jogador, o seu contra-valor financeiro em termos de mercado.
Ora o "passe" tem donos: normalmente, o clube, e dirigentes deste, o empresário - o "apoderado", como talvez melhor se dissesse - fundos de investimento, às vezes também o jogador, outros agentes económicos, entre si distribuem a propriedade do "passe". Como nas sociedades por quotas, sendo aqui o jogador o próprio objecto do negócio, o activo.
Isto é, como o jogador não é, por impossibilidade da sua própria natureza humana, susceptível de partilha física, nem vai para o leilão, exibido num tablado, substitui-se por uma sua metáfora, que é o "passe", e é este que vai para o mercado, ser comprado e vendido.
A realidade que está por dentro deste sistema, a notícia no entanto apreendeu-a bem: do que na verdade se trata é de entregar jogadores em garantia, mediante a ficção do passe; isto é, do que verdadeiramente se traa é de considerar os jogadores coisas, ou mercadoria.
2 - Aprendi na Faculdade que as pessoas estão fora do comércio jurídico, o que quer no essencial dizer que sobre pessoas se não podem estabelecer relações de poder por parte de outras pessoas - não há ius in personam.
Aprendi ainda que é nessa impossibilidade jurídica que se prendem os direitos humanos e a fundamental igualdade entre os homens, e que a possibilidade de coisificação das pessoas terminou com o fim da escravatura.
Claro que, ao pensarmos no volume financeiro das vendas dos "passes", ou no que grande parte dos jogadores auferem como salários, parece estarmos muito longe do padrão da exploração brutal da força de trabalho e da dignidade humana de que eram objecto os escravos.
Mas no fundo, bem lá no fundo dos comportamentos que o comércio dos jogadores traz à superfície, a diferença é muita.
É também certo que, sobre o futebol e os seus segredos, os seus negócios e as suas fraudes, as suas ligações e as suas arcas encoiradas, temos deixado persistir um permissivo manto de opacidade e de impunidade.
Tendemos a desculpar - nomeadamente se o clube for o nosso - que gente ligada a esse mundo ganhe fortunas sem escrutínio fiscal e social, mesmo em tempos de grande austeridade, como os que vivemos; rejubilamos quando a nossa equipa ganha a corrida pela compra de um craque a um rival, mesmo quando sabemos - ou não queremos saber - que os custos são "à inglesa", mas que havemos de ser nós, o país, a pagá-los, de uma forma ou de outra, mais cedo ou mais tarde.
As próximas autárquicas são uma boa ocasião para tentar debater estes pontos sombrios. Até porque boa parte dos candidatos, dos autarcas e dos ex-autarcas conhecem bem, por experiência própria, esse segredos.
3 - Tenho pensado até que ponto esta constituição de direitos sobre pessoas, ou tendo pessoas como objecto - que, como disse, constitui um interdito nos quadros jurídicos em que fui formado - não terá uma qualquer pertinência com alguns dos pontos mais sensíveis das questões e dos problemas em que as IPSS intervêm, nomeadamente em matéria como o direito dos menores em geral, e em especial o enquadramento dos menores em risco.
Trata-se de matéria sensível, evidentemente. E mais sensível ainda quando são lançados para a agenda política novos aspectos dessa questão, como é o da adopção por casais homossexuais. Mais uma razão para colocar o tema no centro do debate das nossas instituições, e na perspectiva da intransigente defesa da dignidade e dos direitos do homem, que outra não pode ser a nossa perspectiva; e não esperar que essa discussão se faça noutras sedes, donde seremos excluídos.
Mas o ponto é este: quando uns serviços públicos definem e aprovam para um criança em risco aquilo que o jargão social chama um "projecto de vida", decerto por ter a noção de que de engenharia humana se trata - os que fazem projectos são os engenheiros - , não estaremos no limiar da constituição de direitos sobre pessoas, de ius in personam? Ou, pelo menos, da constituição de relações de poder sobre elas?
Bem sei que me dirão que não, já que a criança não é dada em propriedade a ninguém, e tudo é feito em nome das razões opostas, que são justamente os direitos da criança.
O que é evidentemente verdade.
Mas isso é assim à superfície.
E por dentro?
* Presidente da Direcção do Centro Social de Ermesinde
Fotos: José Carlos Sá e DMA
Data de introdução: 2005-08-31