HENRIQUE RODRIGUES

“Vinde cá, meu tão certo secretário..."

1 - “Vinde cá, meu tão certo secretário
dos queixumes que sempre ando fazendo,
papel, com que a pena desafogo!”

Já Luís de Camões, na Canção X, nos dava conta de que só há uma forma de guardar um segredo: é contarmo-lo apenas a nós mesmos.
Dito ou conhecido de outros, por mais juras que façam de o manter, é seguro que essa prometida confiança acabará por ser atraiçoada pela tentação irreprimível de o divulgar.
Muitas pessoas, aliás, conhecedoras de segredos mais ou menos interessantes, ou relevantes, ou nocivos a outrem, sabendo não resistirem à vontade ou à compulsão do reconto do que souberam secretamente, e que, com o tempo, acabarão por atraiçoar a confiança de quem lhos contara, confiam o teor do segredo a um escrito, que guardam numa garrafa e que depois enterram, ou entregam ao arbítrio das correntes marítimas – para se livrarem da tentação.
Camões, como vimos, era desta escola, só confiando no papel onde escrevia os seus versos para dar vazão às suas mágoas e aos seus desgostos de amor – aos seus segredos.
O seu secretário era o papel onde escrevia os versos: “meu tão certo secretário..., papel, com que a pena desafogo…”
De facto, secretário, cuja etimologia na língua portuguesa procede do latim, deriva do radical latino “secretus” – isto é, designa aquele que conhece os segredos, ou, como refere o Google, "a pessoa a quem são confiados os segredos e confidências de um superior”.
Ora, segredos, se os confiamos a alguém, que seja a alguém próximo.
Se os nossos políticos, ou comentadores, soubessem latim, talvez não estranhassem tanto as nomeações feitas por arbítrio dos governantes para colaboradores, adjuntos, especialistas e secretários dos seus gabinetes, recrutando boa parte deles no seio da sua própria família ou de amigos próximos – debate que tem ocupado o cento da actualidade política e que promete manter-se aceso até às eleições europeias, afastando a atenção da importância que, talvez mais do que nunca, essas eleições têm para a paz a para a manutenção da democracia liberal sob a qual vivemos há mais de quarenta anos.

2 – Claro que poderemos sempre perguntar-nos que assuntos tão relevantes correrão pelos corredores dos ministérios, que justifiquem o esforço de os espionar ou que legitimem a porfia em mantê-los reservados.
Portugal é um país pequeno e de pouca importância no concerto das nações, não se vislumbrando grande intensidade de matérias que, se divulgadas, pudessem colocar em risco os interesses de Portugal ou dos portugueses.
Só para recordar um episódio relativamente recente (onde o receio de intrusão ilegítima em lugar e matéria reservados consumou o conflito institucional e pessoal entre o Presidente Cavaco Silva e o Primeiro-Ministro José Sócrates, levando ao sacrifício de Fernando Lima, assessor de Belém), a célebre acusação de que o Governo de Sócrates havia tentado espiar as instalações do Palácio de Belém, ainda estou para perceber que assuntos ou dossiês tão importantes correriam pela Presidência da República que justificassem tanta canseira, tanto atrevimento e tanto risco…
(Sem embargo de, hoje, como à data dos factos, continuar persuadido de que tais tentativas de espionagem ocorreram mesmo – trata-se de uma percepção, não possuo quaisquer provas, como é óbvio … Mas continuo sem perceber porquê … Só se fosse para aceder à receita dos célebres carapaus alimados …)
Admito, no entanto, que possa circular alguma informação pelos ministérios, designadamente em matérias de soberania, dada a nossa presença na NATO, na UE e em algumas missões internacionais, ou relativa a preocupações de segurança interna, ou financeira, que convenha manter recatada na mão dos governantes eleitos – sem contaminação hostil por quem possa aceder ilegitimamente a tal informação.
Nessa perspectiva, percebo que quem detêm responsabilidade na gestão da coisa pública e se encontra vinculado a segredo de interesse público possa escolher livremente as pessoas que, durante o seu mandato como governante, o acompanhem na partilha dessa informação e lhe assegurem, até onde for humanamente possível, a solidariedade na guarda e na reserva dela.

3 – Depende, efectivamente, da natureza das funções e da sensatez do governante.
Na verdade, não é a mesma coisa um secretário ou secretária pessoal, de confiança estrita e directa, ou um adjunto de gabinete, ou um chefe de gabinete – em que a confiança pessoal tem um peso que devera ser determinante.
Já o mesmo não acontece com os especialistas - figura de criação recente -, também amiúde contratados e que, como o nome indica, deverão ter alguma especialização, algum conhecimento aprofundado das matérias que correm pelo departamento.
E cuja existência é inútil, pois pretende-se que substituam os serviços da Administração Pública, longamente decapitados dos seus melhores quadros.
Coisa diversa é a nomeação de familiares de governantes para entidades exteriores aos gabinetes, designadamente institutos públicos e entidades reguladoras –, o que também se tem visto no levantamento a que a imprensa tem procedido a propósito da actual overdose de nomeações.
Não cabem aqui as razões de confiança pessoal que podem legitimar outras situações descritas.
Há, todavia, um outro aspecto relativo à constituição dos gabinetes ministeriais que não tem transparecido no debate.
Trata-se do facto, de todos conhecido, de os ministros e os secretários de Estado não serem livres na formação e composição da equipa que os vai acompanhar no nosso pastoreio.
Como se sabe, mais do que a praga dos familiares e amigos, o que verdadeiramente infesta os gabinetes são a frota dos jotinhas – que, mal o partido cujos cartazes andaram a colar pelas esquinas conquiste o poder, seja nas autarquias, seja no Governo, invadem e parasitam os empregos políticos assim obtidos, sem qualquer mérito ou currículo prévio, iniciando ou prosseguindo o viático de uma carreira que, mais ano, menos ano, os vai levar, se continuarem a ser eleitos em lista partidária, aos mais elevados postos da Nação.
E onde reproduzirão o modelo que os alcandorou ao etéreo – et nunc et semper.
Quando um governante toma posse, logo o Partido lhe entrega a lista do contingente a colocar.
O PS e o PSD não se distinguem muito na forma como procedem a este propósito, nas vezes em que, à vez, ocupam o poder.
Costumo dizer que o PS mantém, provavelmente apenas neste aspecto, a herança marxista – considerando, embora por razões pouco ideológicas, que é ao Partido que compete a liderança do Estado, estando o Governo ao serviço do partido; enquanto o PSD, fazendo o mesmo, o faz com má consciência, de forma envergonhada.
As justificações que têm sido apresentadas filiam-se nessa diferença.
Mas o debate em curso deixa-nos, no entanto, uma boa herança: a de que a sociedade exige de quem manda cada vez mais transparência; e cada vez menos arbítrio.

Henrique Rodrigues (Presidente do Centro Social de Ermesinde)

 

Data de introdução: 2019-04-11



















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