Este ano comemora-se o centésimo aniversário de Jorge de Sena que nos deixou uma obra colossal. É da sua autoria a seguinte frase: “A verdadeira dimensão do humano não deveria ser rebaixada pelo protagonismo medíocre da incompetência e dos arrivistas”.
Nestas palavras está implícito um conceito de sociedade em que os valores da ética e do mérito deveriam ser as âncoras mais robustas dos protagonistas das políticas públicas, nos governos, na gestão das empresas e, por maioria de razão, nas instituições de carácter social.
A realidade dos dias de hoje evidencia que se está muito longe desse desiderato, mas o pior é que se sente que esses valores cívicos estão cada ver mais ausentes nos comportamentos dos nossos dirigentes.
Dir-me-ão que é um problema de educação. Também o é. Mas não chega.
A questão é mais de fundo e tem a ver com a hierarquia de valores.
O maior erro civilizacional tem sido o de colocar os bens materiais na hierarquia de valores como o elemento fundamental e prioritário para a conquista da felicidade. Foi este erro que conduziu a que 80% da riqueza produzida no mundo vá parar a 1% da população e que metade da população mundial viva com um rendimento diário entre 2 e 10 dólares.
1% da população mundial mais rica ficou com 27% do crescimento do rendimento global realizado entre 1980 e 2016, enquanto a metade mais pobre ficou com 13% desse rendimento.
A distância que separa o bilião das pessoas mais ricas do mundo do bilião das mais pobres não para de aumentar. Cada ano que passa o bilião dos mais pobres está a rondar o nível de subsistência e muitos estão mesmo abaixo desse nível, enquanto o bilião dos mais ricos, em cada ano que passa, são cada vez mais ricos.
O aumento desta distância pode ser confirmado pelos contrastes flagrantes que se verificam a nível de nutrição, educação, tipos de doenças, dimensão das famílias e esperança de vida.
As Nações Unidas anunciaram que, no planeta, 862 milões de pessoas estão subnutridas, muitas delas com fome, enquanto um maior número, cerca de 1,6 biliões, sofrem de ingestão de excessivas calorias.
A fome é a face mais visível da pobreza e a dimensão do fenómeno é aterradora porque, no mundo, são 18 mil crianças que, por dia, morrem de fome.
A questão do aumento das desigualdades é assim a face mais visível do declínio do nosso tempo.
Mesmo na Europa, que foi o continente que serviu de berço aos grandes movimentos culturais e políticos que enformaram sociedades equilibradas e livres e que cultivou um ideal de homem médio que recusa tanto a escravização como a sua deificação, os extremos da miséria e os extremos da riqueza acentuam-se e são preocupantes os sinais de perda de pujança da classe média. Pior, começa a ser mais claro que, mesmo na Europa, é a capacidade de dar e receber afetos que escasseia nas relações sociais e sem essa capacidade não pode haver lugar nem à responsabilidade, nem à liberdade, valores essenciais de uma sociedade civilizada.
Sem responsabilidade nem liberdade não há lugar nem ao mérito nem à ética. É aí que o terreno para a mediocridade e para os arrivistas medra mais facilmente.
E aqui têm como umas poucas palavras de Jorge de Sena levaram a que o meu pensamento divagasse sobre o que são hoje os grandes desafios do nosso tempo.
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