JOSÉ FIGUEIREDO, ECONOMISTA

Em Defesa da Tributação das Fortunas (2)

Um dos argumentos mais usados para combater a tributação da fortuna, para além da injustiça por dupla tributação (a riqueza foi gerada com rendimento que já foi tributado) e da ineficácia (há muita possibilidade de evasão), é a ideia de que tributar a fortuna pode ser um desincentivo ao investimento e à acumulação de riqueza.
O argumento, em abstrato, não é estúpido, contudo, como creio já ter referido algures nestas crónicas, há uma evidência empírica que, de alguma forma, o contradiz. Até os anos 80 do século passado, quando as tributações eram fortemente progressivas, a produtividade crescia bem mais do que tem crescido desde a chamada revolução neoliberal.
Naturalmente que a evidência empírica acima referida não prova rigorosamente nada (o facto de duas coisas ocorrerem ao mesmo tempo não significa que uma seja causa da outra). No entanto, a mim, aquele simples e bruto facto, sempre me pôs de sobreaviso quanto aos cantos de sereia dos neoliberais.
Curiosamente, saiu recentemente um estudo do oficialíssimo NBER, um departamento de pesquisa económica do estado norte americano, que sugere que existe uma forte correlação positiva entre a tributação da fortuna e o crescimento da produtividade, ou seja, a tributação da fortuna não só não “desanima” os que têm iniciativa como, pelo contrário, pode discriminar a favor dos empreendedores que realmente interessam.
Em termos discursivos o argumento corre como segue.
Imaginemos duas pessoas com a mesma fortuna acumulada. A primeira é muito ativa e tira 20% de rendimento por ano, a segunda é pouco eficiente e não consegue qualquer rendimento, o melhor que consegue é manter a sua riqueza intacta.
Numa geografia em que só o rendimento é tributado, como hoje genericamente acontece, o capitalista pouco eficiente não paga qualquer IRS (não gerou rendimento), o empreendedor com iniciativa paga IRS sobre o rendimento gerado.
Imaginemos agora um modelo inverso em que só a fortuna fosse tributada e não o rendimento. Teríamos que ambos os cidadãos seriam tributados pelo mesmo montante.
A diferença está em que, num mundo em que só a fortuna fosse tributada, o capitalista que não consegue qualquer rendimento vê a sua fortuna a diminuir, o empreendedor com iniciativa, provavelmente vê a sua fortuna a crescer, admitindo que o imposto sobre a fortuna é inferior aos 20% que conseguiu de rendimento.
Esta discriminação positiva a favor dos empreendedores e penalizadora dos meros gastadores das fortunas deve aumentar os ratios de investimento, a acumulação de capital e, consequentemente, a eficiência das economias.
O argumento em si parece sólido. O que surpreende no estudo da NBER não é tanto a conclusão genérica que é mais ou menos óbvia, o que mais surpreende é a dimensão dos efeitos positivos que poderia ter uma reforma fiscal que tendesse a cair mais em cima da fortuna e menos em cima do rendimento.
Numa primeira abordagem o estudo considera a possibilidade de substituir a atual tributação sobre os rendimentos do capital (excluindo os rendimentos do trabalho) por uma tributação da fortuna. No fundo tratar-se-ia de tributar os ricos exatamente pelo mesmo montante global, apenas substituindo os impostos que hoje são cobrados sobre os rendimentos do capital (lucros, rendas, juros, mais-valias, etc.) por um imposto cobrado sobre os patrimónios.
Esta substituição implicaria um acréscimo de 7 ou mesmo 8% no consumo per capita da sociedade. É um impacto positivo enorme que resultaria de uma maior acumulação de capital e em mãos mais produtivas.
Mas podemos imaginar uma solução ainda mais radical. O estudo da NBER simulou o que poderia ser a aplicação de taxas “flat”, isto é não progressivas, sobre a riqueza, sobre os rendimentos de capital e sobre os rendimentos do trabalho. Depois foi à procura das taxas “ótimas” que deviam garantir duas coisas: o mesmo montante de impostos para o governo e o máximo de eficiência económica.
O NBER chegou a uma taxa “flat” sobre a riqueza de 3% e a uma taxa “flat” sobre o trabalho de 14,5%.
O que o estudo do NBER pretende provar é que a tributação da riqueza é justa e que, contrariamente ao velho argumento da inibição do investimento, pelo contrário, favorece uma maior acumulação de capital e em mãos mais produtivas aumentando, consequentemente, a eficiência geral da economia.
Mas há ainda um aspeto positivo na tributação da fortuna que tem que ver com justiça intergeracional e, ao mesmo tempo, com eficiência económica.
A fortuna tende a estar concentrada nos mais idosos uma vez que, não sendo herdada, implica um processo de acumulação mais ou menos longo.
Tributar a riqueza e aliviar, por exemplo, a carga sobre os rendimentos do trabalho, favorece os mais jovens justamente na altura em que mais precisam de rendimento disponível – comprar casa, criar filhos, etc.
Este estudo da NBER é importante na medida em que pode mudar o foco dos argumentos a favor da tributação da fortuna.
Está nas bancas o novo livro de Thomas Piketty (versão em francês) onde se defende uma tributação agressiva das fortunas como forma de reduzir a desigualdade. O problema com este tipo de teses é que, porventura, se encostam demasiado à política. Em termos políticos estas perspetivas justicialistas são conotadas com as esquerdas e a esquerda, diz-se, promove a justiça à custa da eficiência económica. A esquerda é uma espécie de cigarra lá do sítio – boa a distribuir, má a produzir.
A verdade é que está longe de ser óbvio que a tributação das fortunas prejudique a eficiência económica, bem pelo contrário a acreditar nos argumentos do NBER.
O debate ainda está no início – está longe de ser claro quanto da tributação do rendimento pode, de facto, ser substituída por tributação da riqueza. As estimativas atuais variam muito e falta ainda muito trabalho quantitativo neste campo para que saibamos o que, realisticamente, pode ser feito.
Em todo o caso, o que não é aceitável é que, em nome das dificuldades de aplicação, em nome das muitas possibilidades de evasão ou em nome das dificuldades políticas, se meta o assunto na gaveta dos esquecidos e não haja coragem para um amplo debate público. 

 

Data de introdução: 2019-12-05



















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