PROFESSOR ALBERTO BARROS, CATEDRÁTICO EM GENÉTICA MÉDICA

Não deve haver limites à investigação científica

SOLIDARIEDADE - O Centro de Genética de Reprodução, do qual é director clínico, ainda tem o único banco de esperma nacional devidamente credenciado?
Alberto Barros -
Provavelmente eu serei o único médico em Portugal que não precisa de autorização para ter um banco de esperma em Portugal. A designação banco de esperma já não é a mais adequada, mas é assim que ainda é comummente conhecida. É um local de deposição de espermatozóides de dador mas esse não é o único objectivo. Eu comecei em 1985 - fui o primeiro - comecei em simultâneo no Serviço de Genética Médica da Faculdade de Medicina do Porto e na minha clínica privada. Comecei com o objectivo inicial, não da inseminação por dador, mas de crioconservação de espermatozóides de indivíduos que iam ser sujeitos a terapêuticas cirúrgicas e médicas; e que, em consequência disso, iriam ficar inférteis ou teriam grande risco de tal vir a acontecer. Foi isso que me levou a iniciar em Portugal o congelamento, em azoto líquido, de espermatozóides. Nessa altura, como já trabalhava, sobretudo em situações de infertilidade masculina, foi uma evolução natural. Eu comecei em 1985, em Março, e em 1986 saiu um decreto-lei dizendo que quem quisesse fazer conservação de esperma teria que fazer o pedido ao Ministério da Saúde e, num parágrafo final, era dito que quem já o estivesse a fazer teria que se submeter à regulamentação que viesse a ser publicada para o efeito. Ora, como nunca mais foi feita qualquer legislação aconteceu que eu acabei por ser o único a ter tacitamente essa autorização. Até hoje não houve nenhuma legislação produzida e penso que estará para breve, talvez este ano, será elaborada regulamentação que cobrirá este tipo de actividade. Não só para os bancos de esperma, porque agora nós necessitamos de recorrer a espermatozóides do dador muito menos do que acontecia antes. A medicina de reprodução evoluiu e, sobretudo com a Injecção intra-citoplasmática, nós conseguimos resolver situações que até então estariam no domínio do milagre biológico.

SOLIDARIEDADE - De que forma é que hoje é encarada a questão da infertilidade? Houve uma grande evolução de mentalidades?
Alberto Barros -
A infertilidade não é algo natural, é uma situação de doença. É preciso que os políticos e legisladores saibam disto. Não é natural que alguém deseje concretizar a procriação e não consiga fazê-lo. É uma situação de doença que dói muito no plano emocional, psicológico e afectivo. Os casais que têm este problema merecem ser apoiados nos tratamentos. A mudança de mentalidades tem a ver com o aumento dessa realidade e o aumento do debate em volta do tema.

SOLIDARIEDADE - Quais são os números dessa realidade portuguesa?
Alberto Barros -
A realidade portuguesa não está, objectivamente, determinada. Não foi feito nenhum estudo epidemiológico que permita definir essa realidade. Mas não deve ser diferente do que acontece na Europa Ocidental: cerca de 15 por cento dos casais, em idade reprodutiva, tem problemas de infertilidade. A maioria das situações terá um factor masculino e, felizmente, a maioria das situações tem solução.
Há, no entanto, alguns casos que não conseguimos resolver como, por exem-plo, na mulher, nos casos de insuficiência ovárica prematura, aquilo que se designa por menopausa precoce, em que nas mulheres, com menos de 40 anos, os ovários ficam sem função.
Há jovens a quem isso acontece, estima-se que cerca de um por cento das mulheres com menos de 40 anos tem esse problema. Há outras situações clínicas irreversíveis em que somente por recurso à doação de ovócitos se pode tentar resolver o problema. 

SOLIDARIEDADE - A doação de ovócitos é também um recurso para problemas de fertilidade. A congelação dos ovócitos é, portanto, uma prática corrente?
Alberto Barros -
Não é prática corrente. Ainda não saiu em absoluto de uma prática experimental, embora já existam crianças nascidas após fertilização in vitro, com ovócitos previamente crioconservados, é ainda uma prática experimental. A congelação de ovócitos tem resultados francamente maus. A taxa de aproveitamento ovocitária é insuficiente. A doação de ovócitos faz-se na esmagadora maioria dos centros com ovócitos frescos e o que se pode fazer é a congelação de embriões. Se o útero da mulher estiver, naquela altura, preparado para receber os embriões frescos, eles utilizam-se. Se não, eles são congelados. A taxa de aproveitamento dos embriões é muito maior do que a taxa de aproveitamento de ovócitos crioconservados.

SOLIDARIEDADE - Mas não existe aí um problema ético? O que fazer aos embriões conservados quando os dadores já não podem sequer decidir sobre a sua utilização ou destruição?
Alberto Barros -
No âmbito da crioconservação e no da doação de ovócitos esse problema não se coloca porque esses embriões vão ser utilizados. No momento presente a questão dos embriões excedentários, congelados ou não, é cada vez mais um problema menos frequente. Porque tradicionalmente a transferência dos embriões é feita ao segundo dia do desenvolvimento. A maioria dos centros transfere os embriões para o útero ao segundo dia e congela os excedentes, mas a tendência é fazer a cultura prolongada dos embriões em desenvolvimento. Assim faz-se melhor a selecção. É preciso que se diga que cerca de 60 por cento dos embriões não tem qualidade. Têm anomalias genéticas. Felizmente no processo de desenvolvimento embrionário essas anomalias sofrem uma selecção natural de bloqueio. Em vez de se dividirem bloqueiam. Param de se desenvolver ou fragmentam-se. Isso permite-nos seleccionar os melhores, significando isso também que ao cabo de quatro ou cinco dias de desenvolvimento não há embriões para congelar. Na minha opinião a congelação de embriões não deve ser um objectivo a atingir mas deve ser uma prática permitida. Um casal pode beneficiar com essa conservação…

SOLIDARIEDADE - Mas há situações em que o casal já não necessita deles…
Alberto Barros -
Há situações em que isso acontece. Eu defendo uma dupla via. Eu defendo a doação desses embriões ou a utilização desses embriões para investigação científica, não manipulação, mas investigação científica. Para mais tarde ajudar a resolver situações médicas graves. As práticas das técnicas de reprodução medicamente assistida, sejam elas quais forem, devem ser orientadas sempre no sentido da resolução de um problema de infertilidade. E daí eu não aceitar usar essas técnicas em mulheres sós. Já tive dezenas de pedidos mas como não considero ser um problema médico, de doença, relacionado com a infertilidade, eu não faço. Entendo o direito dessas mulheres mas prevalece o meu direito de médico a não aceitar realizar esse acto. É uma questão de consciência médica. 

SOLIDARIEDADE - Nessa fase de manipulação celular deve haver situações que levantam sempre dúvidas do ponto de vista ético…
Alberto Barros -
No âmbito da fertilização in vitro, no diagnóstico genético de pré-implantação, num embrião com três dias já existem seis, sete ou oito células, pode-se tirar uma ou duas para fazer o diagnóstico genético para ver se há problemas de Trissomia 21 ou de Paramilóidose Familiar ou outras doenças graves detectáveis e decidir não transferir esses embriões. Isso parece-me legítimo, nobre. Ajudar a transmitir saúde e evitar a transmissão de doença para geração seguinte.

SOLIDARIEDADE - Todavia levada ao exagero essa possibilidade pode desaguar na escolha dos filhos quase por catálogo…
Alberto Barros -
Há muito folclore no meio de tudo isto. No âmbito do diagnóstico de pré-implantação é possível hoje - e nós já o fizemos - efectuar a selecção do sexo, mas apenas e só porque dessa forma evitámos a transmissão de doença, designadamente da Hemofilia. Mas já tive muitos pedidos de casais que, tendo o desejo de ter um filho ou uma filha, fazem o pedido ao qual invariavelmente eu disse não. Nunca aceitei fazê-lo. Desde 2001, depois de aceitar a Convenção de Oviedo, em Portugal é proibida a selecção de sexo a menos que com isso se evite a transmissão de doença. A escolha do sexo, em minha opinião, não é um acto médico e portanto eu não o faço. Felizmente a população não tem que estar muito receosa. Eu sou católico, sou crente. E a criação humana é fantástica. Tem que haver um dedo divino para justificar de facto a nossa perfeição. Há elementos de protecção da própria espécie que são notáveis. Neste momento, paralelamente à medicina, nós podemos definir o sexo e podemos e devemos evitar situações de transmissão de doença. Agora, características como a nossa inteligência, como a nossa estatura, a nossa beleza, são características de carácter multifactorial, dependentes de múltiplos genes a interagirem entre eles e de múltiplos factores de ordem ambiental. Isto significa que dois gémeos monozigóticos, aquilo que se conhece por gémeos verdadeiros, podem ser, em função da vida, muito distintos. Essas características são sempre o resultado de um baralho de cartas. O conhecimento do genoma humano é ainda anatómico. De estrutura. A interacção entre os genes, toda essa informação é algo que demorará muito tempo a ser descodificada. Neste momento é ficção. O bebé à la carte é ainda ficção. Eu costumo contar aquela famosa anedota em que o Einstein encontrou a Marilyn Monroe e esta desafiou o cientista a terem um filho com a beleza dela e a inteligência dele. O físico respondeu à actriz famosa que podia dar-se o caso do filho sair com a inteligência dela e a beleza dele…

SOLIDARIEDADE - Até que ponto a adopção de crianças pode ajudar também a resolver situações de pais com problemas de infertilidade?
Alberto Barros -
O conhecimento que tenho dessa problemática é aquele que advém da minha experiência profissional. O que eu sei é que há pais que, sendo meus doentes e tendo um problema de infertilidade grave, desenvolvem paralelamente a hipótese de adopção. E há casos que, tendo resolvido o problema de infertilidade através da fertilização in vitro, continuam a querer adoptar. Há pessoas que conheço que continuam à espera e até confessam que já foram encorajadas a desistir. Estes relatos são a minha única fonte, mas parece--me que continua a ser difícil e moroso e é pena. Eu aqui lembro-me sempre do ditado popular segundo o qual "parir é dor criar é amor". É uma opção importante que deve ser facilitada e incentivada.

SOLIDARIEDADE - Temos estado a conversar sobre as tentativas de vida e dos casais que tudo fazem para ter filhos mas há outra realidade que é o aborto. Qual é a sua posição?
Alberto Barros -
A minha posição é de enorme respeito pela decisão individual. Se eu tivesse um poder absoluto o abortamento nunca existiria porque não haveria necessidade de o praticar. Quem não deseja uma gravidez devia ter a consciência e o poder de a evitar e, portanto, a gravidez devia ser sempre um acto de desejo e amor. Isto é utópico. Sendo utópico nós temos uma realidade. Eu, durante vários anos, até 1989, fiz a especialidade de obstetrícia no Hospital de S. João no Porto. E nessa prática deparei com inúmeros casos de abortamentos praticados em muitos locais sem controle e tive a realidade bem presente das consequências. Desde a jovem que por causa de uma infecção ficava sem útero até à mulher jovem, já com filhos, que morria em consequência de um abortamento e de uma infecção. Nesses casos o meu coração ficava pequeno de ver uma desgraça que poderia ter sido evitada se a realidade social e legislativa fosse diferente. É preferível que havendo essa realidade ela seja uma prática legal. Eu penso que por causa dessa realidade o aborto deve ser legalizado. Mas o que é importante que seja feito, é que se usem os meios de comunicação social, sobretudo a televisão, para educar, informar e formar sobre a sexualidade. Acho que deve ser permitido o aborto mas a profilaxia, ao mais alto nível, deve ser activada para que essa realidade seja cada vez menos recorrente.

SOLIDARIEDADE - Apelando à sua condição de cientista, que lida com o aparecimento da vida todos os dias, há um momento a partir do qual aquele conjunto de células pode ser considerado vida humana?
Alberto Barros -
Essa discussão não é da ciência. É uma discussão da filosofia e da religião. A ciência não pode responder. O ser vivo existe no ovócito, no espermatozóide e quando os seus núcleos se fundem há um novo ser. Aquele ovo, aquele zigoto, que é uma célula só, é um ser vivo mas ser humano…eu não considero ainda. É um ser humano em potência. Eu, que acredito no corpo e na alma, não estou a ver que naquela célula exista já a alma, exista um espírito. Aquela célula vai dar origem a milhões de outras células. Quando há diferenciação de células nenhuma delas dará origem a um ser humano a não ser que entremos aqui na clonagem. E a clonagem ainda vem acrescentar mais areia a esta engrenagem filosófico-religiosa, porque agora uma qualquer célula pode dar origem a um ser vivo. Mas pondo de parte essa questão… Nós temos um zigoto que, multiplicando-se, dá origem a um embrião de oito células que podem ser separadas e cada uma delas dar origem a um ser humano que tem corpo e alma, tem espírito. Eu não sei quando é que isto verdadeiramente começa…

SOLIDARIEDADE - Não sabe quando é que um ser vivo passa a ser um ser humano…
Alberto Barros -
Não sei. Essa é uma decisão mais política do que médica. No plano médico-científico um embrião com duas, três, quatro ou seis semanas já é uma individualidade. A partir das duas semanas já está em diferenciação dos seus órgãos.
É tanto ser humano nesta altura como será às oito semanas ou às dez. Nós sabemos, no entanto, que um embrião com duas semanas ainda tem uma probabilidade de vir a sofrer um abortamento espontâneo. O embrião ainda tem cerca de 60 por cento de probabilidades de ter anomalias. A diferenciação do embrião está completa entre as dez e as doze semanas. É o chamado período da embriogénese. A partir daí passa a ser a fetogénese em que o embrião entra num período de crescimento e maturação. Ele está totalmente diferenciado. A interrupção da gravidez, por motivos não médicos, deve ser feita até essa altura. Mas isto é muito discutível. Por motivos médicos a interrupção até às 24 semanas parece-me estar muito bem. Agora vou dizer-lhe uma coisa: eu pessoalmente seria incapaz de fazer um aborto por motivos não médicos. Ficaria perturbado no plano afectivo, emocional e até religioso. Agora, eu não seria capaz de, sendo juiz de direito ou religioso, condenar alguém que o tenha feito. Deve haver um grande respeito pela decisão que, no plano emocional, pune muito a mulher.

SOLIDARIEDADE - Falou em clonagem. Qual é a sua opinião sobre as possibilidades médicas que a clonagem parece permitir?
Alberto Barros -
A clonagem humana reprodutiva é um disparate. A clonagem terapêutica é um elemento de investigação que pode não atingir a expectativa que se está a criar. Mas, na minha opinião, não deve haver limites à investigação científica. Por mais arriscada que ela possa ser, no sentido do receio da sua má utilização. Eu estou convencido de que qualquer avanço científico, seja na área da medicina seja na área da tecnologia em geral, virá a ser mais proveitosa para a humanidade do que inconveniente. Talvez seja utópico, mas continuo a pensar que a maior parte das pessoas é gente séria. No âmbito da clonagem terapêutica não deve ser limitada. Tem um potencial fantástico na resolução de problemas graves, seja no transplante de tecidos, ou de pele, seja no transplante de órgãos…poderá vir a ser fantástico. Quanto à clonagem reprodutiva eu penso que neste momento é um disparate, porque não temos o controle sobre o processo. Tem uma eficácia muito baixa e os resultados têm sido catastróficos. Agora, se daqui a duas ou três gerações houver um controle biológico da clonagem reprodutiva… não sei. Se houver um motivo médico que o justifique…

SOLIDARIEDADE - Conhece o parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida a esse propósito… "A clonagem de seres humanos, pela gravidade dos problemas que põe à dignidade da pessoa humana, ao equilíbrio da espécie humana e à vida em sociedade é eticamente inaceitável e deve ser proibida."
Alberto Barros -
Ao equilíbrio da espécie… é uma declaração ignorante porque o equilíbrio não é posto em causa. Como já disse, hoje isso é um disparate, mas se a clonagem reprodutiva viesse a ser praticada daqui a algumas gerações será sempre de carácter pontual. Em termos de genética populacional não tem significado nenhum. O significado do não à clonagem reprodutiva e de modo algum à clonagem reprodutiva humana é um não ao disparate biológico. Seria acrescentar patologia àquela que já existe. É o oposto daquilo que eu defendo que é a prática das técnicas reprodutivas deve servir para reduzir a transmissão de doenças à geração seguinte, no âmbito do diagnóstico de pré-implantação, ou seja para resolver problemas de infertilidade. Não devem ser utilizadas para acrescentar doença àquela que já existe.

 

Data de introdução: 2005-10-16



















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