Eugénio José da Cruz Fonseca é o presidente da Cáritas Portuguesa. É natural e residente em Setúbal, onde nasceu em 1957. É Licenciado em Ciências Religiosas pela Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa. Em 1996, foi eleito Presidente- Adjunto da União das Instituições Particulares de Solidariedade Social, agora designada de Confederação das Instituições de Solidariedade Social, onde esteve até 2012. Em 1987, foi nomeado Presidente da Cáritas Diocesana de Setúbal, cargo que exerceu até 2016. Em 1999, foi nomeado, pela Conferência Episcopal Portuguesa, Presidente da Cáritas Portuguesa, cargo que atualmente exerce.
SOLIDARIEDADE - A Cáritas tem recebido muitos pedidos de ajuda por causa da Covid-19?
EUGÉNIO FONSECA - Quase mais de metade do número total de atendimentos do ano passado que foram 101.462. Estes números referem-se apenas às 20 Cáritas Diocesanas e a pouquíssimos atendimentos socias de proximidade feitos em cada paróquia. Se um dia for possível ter informações das 4.374 paróquias existentes em Portugal, o número referido representará uma “gota” no grande oceano do conhecimento (causas, problemas e necessidades) da realidade da pobreza material no nosso país. Os meses de abril e maio foram os de maior pressão sobre os atendimentos. A falta de recursos surgiu rápida e logo com alguma agressividade. A falta de rendimentos das empresas familiares e microempresas que tiveram de dispensar alguns dos seus colaboradores; as empresas candidatas ao lay-off que não viram, atempadamente, aprovadas as suas candidaturas; a inexistência de poupanças resultantes de salários baixos, etc. fizeram com que muita gente tivesse necessidade de ajuda imediata para a aquisição de bens básicos. Por agora, a afluência diminuiu um pouco, porque os salários, pelo menos em parte, começaram a ser pagos e, quem a isso teve direito, acedeu ao subsídio de desemprego. Mas a juntar a estes não podemos esquecer os que fazem parte do número que já referi, pois, a maioria deles, ainda continuam em situação de carência. Ou seja, a situação deste grande número de pessoas com falta de recursos financeiros, não pode fazer esquecer os mais de 17% que já vivem em estado de pobreza.
Há alguns dados que prenunciem uma crise social profunda?
São vários os indicadores. Não é este o espaço para os explanar a todos. Limito-me a enunciá-los, adiantando já que estamos numa nova crise económico-financeira, mas com uma gravidade que ninguém de nós já viveu. Os indicadores, entre outros, são: a drástica redução dos postos de trabalho; a impossibilidade de manter a lay-off pelo tempo que as empresas mais débeis dele poderiam precisar; o findar das bonificações que estão ainda em curso com moratórias, até ao final do ano que possibilitam o adiar do pagamento de impostos fiscais e taxas à Segurança Social; a diminuição muito forte de atividades relacionadas com o turismo; o aparecimento de problemas de saúde, com particular preocupação para o domínio da saúde mental que estes problemas costumam acarretar; a diminuição das exportações e a dificuldade em emigrar à procura de trabalho, pois todo o mundo está a ser atingido por esta crise resultante da crise sanitária, cujo desfecho ainda não se conhece. A agressividade de tudo isto dependerá do comportamento da União Europeia. Para já, parece estar no bom caminho. Porém, no essencial, ainda não passou do plano das promessas. A EU ou se refontaliza, retomando os valores que estiveram na sua origem ou ficaremos todos a saber, aquilo que nós portugueses já experimentámos na última crise, que só existe para beneficiar os países mais ricos do norte da Europa. Todavia, o importante é manter viva a certeza de que, com justiça social, assente na diferenciação positiva, e na solidariedade que respeite a dignidade de cada pessoa e de todo o Portugal, haveremos de vencer mais esta prova à nossa capacidade de desbravar novos caminhos. Por mares nunca de antes navegados, no dizer no nosso poeta Camões (Lusíadas, Canto 1).
As Instituições Sociais foram a "almofada" no tempo da crise de 2019/2013. Será algo semelhante?
Sem dúvida. Por vezes fico estarrecido quando assisto a debates nos quais, representantes de determinadas ideologias, questionam a existência e a ação das IPSS. Quanto a mim, não o fazem por convicção, mas com o intuito de valorizar o papel do Estado. Isto só revela, apesar da Constituição da República Portuguesa, evidenciar, com clareza, o papel do Estado e o da Sociedade Civil organizada, que há um debate por fazer, tendo como pano de fundo o desenvolvimento integral do país e o bem comum sem qualquer tipo de aceção. As IPSS estão a fazer um grande esforço, mantendo os serviços sempre prestados, apenas encerraram os que foram mandados fechar pelas autoridades de saúde. Este esforço não põe em causa aquele que também foi feito pelos serviços estatais, concretamente pelo pessoal de saúde e militar e de Segurança. Mas, é óbvio que quem está mais próximo, chega mais depressa. Toma conta da realidade com maior assertividade e mobiliza as comunidades locais para a partilha de bens e de tempo. Nesta dinâmica não esqueço o trabalho meritório das Câmaras Municipais e das Juntas de Freguesia. O que não deveria faltar, e mais uma vez sucedeu, era o apoio atempado em meios e orientações para tornar mais eficiente o trabalho destas instâncias de maior proximidade. É verdade que, nestas como em muitas outras situações emergentes, as instituições, mesmo as informais, têm sido uma boa “almofada”, onde por vezes, os mais responsáveis descansam. Mas há que nutrir as IPSS de meios humanos e financeiros suficientes para responderem sem terem que viver em sobressaltados financeiros. Por outro lado, há que acabar com a dicotomia Estado e IPSS e passar-se a falar mais de cooperação aberta e sem “patrões” e “clientes”, mas como “tribulação” do mesmo “barco”, remando todos no mesmo sentido, para se atracar a bom porto.
Que consequências prevê deste período de Covid-19?
As consequências já as enunciei ao referir-me à crise económica e financeira. Acrescento aquelas que decorrem da própria pandemia que ainda não se sabe quando cessará. Pelos indicadores que nos vão sendo disponibilizados, receio o aumento de contaminações e a tragédia de mais mortes; o aumento de estados depressivos, sobretudo em pessoas de mais idade, devido ao isolamento físico; uma impossibilidade de resposta, até agora conseguida, por parte do Sistema Nacional de Saúde se ocorrer uma nova e maior vaga de contaminações; o desrespeito pelas orientações das autoridades de saúde face ao cansaço no cumprimentos das que já estão em prática. São possibilidades que gostaria não se tornassem realidades. Isso depende de cada um/a de nós. É preciso ter respeito pelo próximo. Por nós e pelos outros. Não nos podemos descuidar no cumprimento das medidas de prevenção. Já, agora, como alguém me disse, talvez fosse mais explícito falar em “distanciamento físico” que em “distanciamento social”. Esta indicação é mais abstrata. Também uma das consequências que prevejo, para não dizer que considero imprescindível, é a oportunidade de repensarmos o planeamento, o conhecimento dos recursos disponíveis, os métodos de articulação entre instituições públicas e privadas, bem como a maior capacitação de quem é chamado a dirigir e a colaborar.
Está o país preparado para uma nova crise?
Temos uma certa fama de nos desenrascarmos. É a metodologia espontânea do reagir em vez de pro-agir. Mas não me parece que uma crise destas dimensões se compadeça com voluntarismos reativos. Não teremos todos os recursos, mas há que acautelar a criação de metodologias que evidenciem a interdependência entre cidadãos e instituições. Esta é a hora de nos convencermos que o nosso bem também depende dos outros. Ninguém se salva sozinho. Recordo aquele magnifico fim de tarde, de 27 de março, em que na Praça de S. Pedro, Francisco, aparentemente só, gritou que não nos esqueçamos que estamos todos no “mesmo barco”. Se embarcarmos todos, sabendo que as “ondas” serão altaneiras, mas com a união de esforços, sem dispensar ninguém, venceremos a tempestade.
Como se tem comportado o governo nesta matéria de apoio e prevenção social?
Não nego o esforço que se tem feito. Pelo que se vê, nenhum governo, a nível, mundial, estava preparado para tão inesperadas duas crises desta dimensão. Quanto ao governo português teve dificuldade em fazer chegar a tempo os materiais necessários para a prevenção e combate ao vírus. Reconheço, porém, que a demora esteve relacionada com a saturação do mercado que produzia materiais tão específicos. Por outro lado, a falta de equipamentos, como ventiladores, era já uma carência do sistema para além de não estar adequada a distribuição dos existentes. Mais uma vez se comprovou como a governança deste país carece de articulação eficaz entre Ministérios e dentro de cada um deles, dos departamentos existentes. Contrariamente, realço a boa articulação entre a Presidência da República, o Governo e o Parlamento. Destaco o posicionamento de alguns Partidos com assento parlamentar que, apesar de determinadas divergências políticas, optaram por consensos, sabendo que o grave problema que afligia o povo estava acima de tudo. Gostaria que o mesmo acontecesse no que concerne à crise económica e financeira. Nada destas instâncias conseguiria o que fez, se não tivesse tido na linha da frente, tantos heróis como todo o pessoal de saúde, as forças de segurança, os colaboradores assalariados e voluntários das instituições sociais, as corporações de bombeiros, as Juntas de Freguesia e as Câmaras Municipais.
Que estratégia tem a Cáritas gizada para os próximos tempos?
Sob a égide do lema “Inverter a curva da pobreza” a Cáritas, em Portugal, aposta na resposta à satisfação de necessidades básicas de subsistência. O povo português foi já muito solidário no combate às carências alimentares. Agora, é preciso ter consciência de que os géneros alimentares doados precisam de gás, água, eletricidade e habitação para os confecionar. Precisamos, por isso, de meios financeiros para ajudar as pessoas a terem acesso a estes bens. Como apoiar no pagamento de medicamentos, de propinas para alunos universitários, na compra de computadores para que crianças e jovens continuem a estudar, etc. Sei que o povo já deu muito, mas apelo aos que ainda o possam fazer que não se esqueçam destas necessidades, indo o meu apelo mais direto para as empresas que tenham condições financeiras satisfatórias.
Faz sentido pensar-se em programas de emergência alimentar, como já houve?
Como referi, faz todo o sentido. Há pessoas que já não conseguem ter condições para acederem às refeições diárias principais e muitas mais que o fazem, mas com baixos níveis nutricionais. O direito à alimentação é inerente à condição do ser humano, como de qualquer outro ser vivo. Estou a falar de direito positivos, que o são mesmo que não existisse uma Declaração Universal dos Direitos Humanos. Deixar alguém passar fome é um crime. Mas tudo o que nesta área, como em todas as outras, se faça é imperioso ter sempre em conta a defesa e o respeito pela dignidade humana que tem no princípio “não faças aos outros o que não gostarias que te fizessem a ti” um referencial objetivo.
V.M. Pinto (texto)
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