Todos os acontecimentos disruptivos criam a sua tribo de profetas e uma mitologia.
Lembram-se dos primeiros tempos da SIDA?
O que se dizia na altura era que as relações afetivas entre seres humanos nunca mais seriam as mesmas, que as grandes conquistas civilizacionais do século XX, nomeadamente, a revolução sexual e a libertação da mulher estavam comprometidas. Esperava-nos uma nova barbárie, uma nova idade das trevas…
No entanto, com uma melhor profilaxia e, sobretudo, com os retrovirais, em pouco tempo tudo voltou ao normal. Felizmente!
Esta pandemia também está a criar a sua mitologia.
Uma delas é o fim dos escritórios como os conhecemos hoje.
As empresas descobriram que podem colocar pessoas a trabalhar em casa sem aparentes custos de produtividade e com uma enorme poupança nos custos.
Parece até ser lucro para todos dado que, aparentemente, para os trabalhadores também haverá ganhos. Desde logo os custos, materiais e sobretudo psicológicos, da deslocação para o trabalho em transportes públicos sobrelotados ou conduzindo em estradas engarrafadas. Trabalhar em casa permite também conciliar a profissão com algumas tarefas domésticas, por exemplo, ajudar os filhos nos trabalhos escolares.
Temos o paraíso pela frente? Mais devagar!
Posso falar-vos de uma experiência que acompanho de uma grande empresa de serviços, com mais de 3.000 trabalhadores e que chegou a ter 96% dos empregados a trabalhar em casa.
Resolvidos alguns problemas técnicos iniciais – resposta limitada dos sistemas de IT e problemas de comunicações – verificou-se que a empresa atravessou este período de confinamento sem comprometer nenhuma das suas funções nucleares.
Os mais otimistas da corporação calculam agora que até 2/3 da força laboral da companhia possa ser colocada a trabalhar em casa mesmo depois de a crise pandémica estar ultrapassada.
Os ganhos podem ser brutais.
Mas uma análise mais fina traz-nos um conjunto de advertências.
É verdade que a produtividade, aparentemente, não caiu.
Contudo, já é claro que a dispersão da produtividade aumentou. Os que já eram mais dedicados e eficientes ficaram ainda mais produtivos, em contrapartida, os atrasados ficaram ainda mais para trás. Como resolver este problema? Como fazer o treino dos retardatários à distância?
Também não podemos dar como definitiva a aparente estabilidade da produtividade.
Na verdade, durante a pandemia, no caso em concreto de que estou a falar, o trabalho real diminuiu para metade. Como seria se a quantidade de trabalho estivesse em pleno? Veríamos os mesmos resultados?
Por outro lado, convém lembrar que o período da experiência é muito curto. Se durasse, digamos um ano, veríamos os mesmos resultados?
Notar que o trabalho em casa é, para muitos, uma experiência nova e com alguns atrativos iniciais. Com o tempo virá o cansaço, os atrativos vão desvanecer, os aspetos negativos vão crescer e é tudo menos certo que este enamoramento inicial seja duradouro.
Depois há aqui um ponto de vista de classe. Muitos intelectuais de trazer por casa e profetas de coisa nenhuma falam de barriga cheia. Uma coisa é trabalhar em casas grandes, cómodas, com bons equipamentos informáticos e boas comunicações, outra é trabalhar em apartamentos urbanos pequenos, com vizinhos barulhentos e crianças a correr e gritar pelos espaços exíguos…
Mas demos até de barato que as advertências acima referidas não colhem e que podemos tranquilamente funcionar com muita gente a trabalhar em casa.
Mas será que, no longo prazo, podemos mesmo?
Imaginem uma empresa de serviços em que 90% das pessoas trabalham em casa e com um grande turnover do pessoal, digamos uma média de permanência na empresa de um ano ou dois.
Ao fim de não muito tempo ninguém conhece ninguém na empresa.
É certo que numa perspetiva vertical pode não haver grande problema – pelo menos as chefias haverão de conhecer as pessoas. Mas no plano horizontal, nas relações entre departamentos, como será quando ninguém conhecer ninguém?
Pensemos um pouco em termos de inovação.
Não há dúvida de que pequenos grupos, digitalmente aptos, rápidos e muito competentes são capazes de estimular a produtividade.
Mas não é disso que vive o progresso do mundo – essa é a parte fácil. O progresso do mundo vive de ruturas. O verdadeiro progresso vem de combinações novas, de acasos felizes e encontros casuais. Muito vem de conversas de corredor, da intriga na máquina do café ou dos comentários no garrafão da água.
Pensemos também na segurança da informação corporativa.
Defender informação reservada nem sempre é fácil.
Não é possível garantir a discrição de todos os colaboradores. Sabemos que para muitas pessoas vigora a regra de Polichinelo – um segredo continua a ser segredo desde que contado a uma pessoa de cada vez.
Grande parte das indiscrições corporativas resultam de ambientes de alcova. Quando se namora dizem-se alguns disparates (juras de amor eterno, por exemplo) e cometem-se, propositadamente ou não, umas quantas indiscrições.
Muitos dos casos mais famosos de inside trading do passado resultaram de murmúrios entre lençóis.
Podemos imaginar como o risco de segurança da informação corporativa reservada aumentou com o trabalho em casa. Inevitavelmente há gente a ouvir entre adultos, adolescentes e crianças. Informação reservada ficou disponível em écrans de computadores, em papéis impressos ou em ficheiros que inadvertidamente podem ser vistos por várias pessoas.
Finalmente, porque é de homens e mulheres que se trata, convém não esquecer o que nos faz verdadeiramente humanos.
Ao longo de milhões de anos, a evolução fez de nós os seres que agora conhecemos. Uma componente fundamental desse processo resulta do carácter social (somos uma das cerca de vinte espécies sociais do planeta) que manifestámos desde os primeiros grupos de australopitecos. Não seríamos o que somos hoje se apenas tivesse funcionado a evolução com base na seleção natural do indivíduo mais apto – foi também a seleção de grupo que nos fabricou. Foi como grupos que chegámos à abstração, à linguagem, à sedentarização e tudo o mais que fez de nós o que somos hoje. Olhos nos olhos e a imensa capacidade que temos para perceber intenções nos mais ínfimos sinais dos outros, são parte essencial do “ser humano”. E assim continuará a ser, per omnia saecula saeculorum, ámen.
Está por provar que existam sucedâneos no mundo digital.
Nas sociedades, como infelizmente é o caso da nossa, onde o associativismo espontâneo é escasso, o trabalho é muitas vezes a forma mais importante de socialização exterior à família. A privação da socialização pelo trabalho fará as sociedades necessariamente mais pobres.
O que nos ensina a pandemia nesta matéria?
Para os mais lúcidos sempre foi claro que muito do trabalho que se fazia nos escritórios era inútil e dispensável e que muitas tarefas podem ser desempenhadas em casa sem riscos de maior, seja para a produtividade seja para a coesão das companhias.
Há muito que corporações de vanguarda promoviam experiências limitadas de trabalho em casa com resultados genericamente positivos.
A única coisa nova por estes dias é que a emergência pandémica permitiu provar que é perfeitamente possível massificar o trabalho à distância. As corporações com melhor governo estão agora a digerir os resultados da experiência a que foram forçadas e a tentar capitalizar para o futuro.
É até provável que os encontros físicos se tornem mais raros e que, tal como no passado se exagerava na presença física, agora se exagere na digitalização das relações de trabalho.
Contudo, quando a poeira assentar, veremos que o bom e velho escritório não era assim tão mau. Que a presença física, até porque mais rara, se tornou mais preciosa e necessita de ser melhor aproveitada.
Acredito que os escritórios não vão desaparecer, mas acredito que vão ser diferentes – menos secretárias, ocupação mais flutuante, menos espaços dedicados e mais espaços comuns (fóruns abertos, salas de reuniões, por exemplo).
Tal como Mark Twain escreveu um dia que as notícias sobre a sua morte eram manifestamente exageradas, também a morte do escritório me parece uma declaração extemporânea.
Não há inqueritos válidos.