Karl Marx cita algures a famosa frase de Friedrich Hegel: “a coruja de Atena começa o seu voo depois do crepúsculo”.
Não sei o que Hegel queria significar com este famoso aforismo (não tenho a certeza que alguém saiba – a criatura era mesmo obscura), contudo, percebo muito bem o que o grande economista queria dizer.
Karl Marx acreditava que a vida precedia a consciência. O “espírito humano”, em bom rigor, não “cria” nada – limita-se a, com o tempo, refletir a alteração das condições materiais da sociedade.
Embora eu não seja, deste estrito ponto de vista, um materialista convicto, reconheço que, no caso do pensamento económico, a visão Marxista corresponde, em larga medida, à experiência histórica.
A revolução Keynesiana, por exemplo, não foi um produto antecipado do “espírito” – foi o resultado natural da “Grande Depressão” e da falência dos modelos teóricos anteriores. Com base no que se julgava saber na altura, ninguém conseguia explicar o que se estava a passar nem como sair do atoleiro.
Os excessos intervencionistas do pós-guerra criaram as condições para a crítica de Robert Lucas e para a formação do novo consenso que, em boa medida, ainda persiste.
Porventura, a crise de 2008/2009 com as suas sequelas e, agora, a crise da pandemia da covid-19, vão criar as condições para a formação de novos consensos teóricos.
Os pacotes fiscais de apoio às economias em consequência da crise pandémica foram de uma escala nunca antes vista de um lado e do outro do Atlântico – aliás muito maiores na liberalíssima América que no velho continente.
Na Europa vimos o que parecia impensável apenas há um par de anos – a União Europeia vai endividar-se em largas centenas de biliões de euros para subsidiar os estados mais afetados pela pandemia.
É agora claro que os países vão sair desta crise com níveis de dívida pública que, no passado, só se viram na sequência de crises económicas brutais (caso de Portugal em 2015) ou à saída das guerras.
E, como sempre aconteceu no passado, só agora a coruja de Atena bate as asas para o seu voo crepuscular, ou seja, só agora a teoria se vai aproximando à nova realidade. Começamos a ver os primeiros sinais do novo consenso e vimo-los surgir no sítio certo – nas instituições internacionais que, tradicionalmente, são os guardiões da ortodoxia.
Não haverá sítio melhor para visualizar estas coisas que no FMI.
O FMI sempre foi visto como o baluarte da ortodoxia. Aliás era costume brincar com sigla inglesa IMF como querendo dizer não “International Monetary Fund” mas “It’s Most Fiscal”, ou seja “É quase tudo fiscal”. Na verdade, perante uma crise de balança de pagamentos, a receita do FMI era sempre a mesma – aperto fiscal, desvalorização monetária e reequilíbrio externo à custa de uma recessão brutal.
Nós portugueses sabemos disto melhor que ninguém. Das duas vezes que fomos forçados a recorrer ao FMI levámos com a farmacopeia convencional, engolimos duas recessões de gelar o espinhaço, mas superámos crises sérias de balança de pagamentos.
Da última vez, ou seja, na crise que se seguiu a 2011, a coisa foi pior. A União Europeia, não percebendo que a crise era de natureza diferente, resolveu solicitar a intervenção do FMI numa troika com o resultado que se viu. Na verdade, o FMI não era para ali chamado, aquela não era a praia do FMI e as consequências foram dramáticas. Muito do sofrimento de gregos, portugueses, irlandeses ou espanhóis, nomeadamente, poderia ter sido evitado.
O FMI publica recorrentemente o outlook económico global que, para mim, tem sobretudo a enorme utilidade de ter associada uma base de dados muito completa e muito fácil de trabalhar sobre os agregados macroeconómicos de todos os países do mundo.
Frequento menos a produção teórica do FMI embora nem sempre tenha sido desinteressante, pelo contrário. Não raramente, os papéis teóricos do fundo foram particularmente críticos da atuação concreta do FMI em muitas situações como aconteceu, por exemplo, com a desastrosa gestão da crise da dívida soberana na Grécia.
No entanto, o FMI sempre teve o cuidado de colocar uma vinheta por cima dos textos teóricos onde se lê que a visão dos autores não coincide necessariamente com a visão do fundo. As heterodoxias teóricas nunca mudaram por aí além a ortodoxia prática.
Mas, recentemente, um artigo no FT de Martin Sandbu, um jornalista admirável (faz-me confusão como é que alguém tão jovem – aparenta ter trinta e poucos anos – pode ter tanto conhecimento e tanta maturidade) chamou-me a atenção para o que parece ser uma revolução intelectual no seio do FMI.
Por exemplo, o FMI já não anatematiza os controlos de capitais – já não são vistos como belzebu em pessoa e aceita-se que, em determinadas circunstâncias, podem ser a única forma de um país de defender, por exemplo, de ataques especulativos.
A dívida pública já não parece ser a lepra dos nossos tempos. No último Fiscal Monitor o FMI diz que os estados devem aproveitar a maré de taxas de juro muito baixas para promover o investimento público, nomeadamente na manutenção e qualificação das infraestruturas.
Mais se recomenda que os estados invistam forte na revolução verde e na digitalização sendo que o impacto na dívida pública deve ser relativizado embora, obviamente, se recomende um controlo apertado sobre a qualidade do investimento público.
Ao mesmo tempo são revistos em alta os multiplicadores do investimento público. Admite-se que, nas atuais circunstâncias, o aumento de 1% no investimento público provoque ao fim de dois anos um aumento do PIB de 2%.
A equivalência Ricardiana já era! Afinal, mesmo que financiado com dívida, o investimento público não deixa tudo na mesma!
A possibilidade de “crowding out” do setor privado, isto é, a possibilidade de o investimento público “expulsar” o investimento privado por via da limitação dos recursos, afinal, já não funciona!
Pasmo, pasmo mesmo!
Foi necessária uma boa crise e muito, muito sofrimento para que as cabeças duras percebam o óbvio.
Mas é bom. É bom que um novo consenso possa emergir e que o FMI se passe a preocupar mais com as pessoas e menos com os saldos orçamentais.
Não que acreditemos em almoços grátis, que os deficits do estado não tenham consequências e que a dívida pública não deva ser gerida com todo o rigor. Uma dívida pública demasiado baixa não é bom, mas é pior que seja demasiado alta. A Moderna Teoria Monetária (MMT) tenta demonstrar a irrelevância da dívida pública, mas é apenas aplicável a um caso limite e, consequentemente, de pouca utilidade prática.
Trata-se apenas de perceber que, como diz o poema bíblico do Eclesiastes, há um tempo para tudo - há um tempo para a paz e outo para a guerra, há um tempo para semear e outro para colher.
Também há um tempo para puxar pela dívida pública e outro para a “pagar”.
É mesmo só isso! Afinal, como tudo o que profundo, é muito simples.
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