Desde a mudança de paradigma ocorrida com a aprovação do Código de Trabalho em 2003, os governos têm privilegiado mudanças graduais na legislação laboral, muito frequentemente acordadas na concertação social. Mesmo assim, têm sido recorrentemente criticados pelas reformas introduzidas, em nome da defesa da estabilidade do estatuído.
Apesar de o PS ter governado depois de 2005 a maior parte do tempo e de o ter feito durante mais de uma legislatura em entendimento político com as outras forças da esquerda política, não rompeu com o (des)equilíbrio introduzido em 2003, de desvalorização da negociação coletiva e de estímulo à individualização das relações de trabalho. Mas introduziu correções muito significativas e relevantes em certos capítulos da legislação laboral, como o combate à precariedade, a proteção da parte fraca nas relações contratuais, a conciliação entre a vida individual, familiar e profissional, ou a promoção da igualdade de género.
O programa de governo antecipava uma legislatura diferente das anteriores em matéria laboral. Não é um programa que vise empatar, manter ou congelar. É proativo, pretende uma nova mudança de paradigma e coloca à cabeça a intenção de avançar mesmo sem a geração de consensos com representantes patronais e sindicais, rejeitando que estes sejam uma condicionante.
O anúncio mais relevante das intenções do governo em matéria laboral, era, no entanto, um silêncio. A palavra precariedade está totalmente ausente do programa. Esta ausência repercutiu-se no anteprojeto que foi presente aos cidadãos no mês de julho. Um dos fios condutores das propostas feitas é o de acolher sob a ideia de flexibilidade o enfraquecimento de vínculos recíprocos entre empregadores e trabalhadores, o de acentuar a subordinação dos trabalhadores, de melhor e mais apertadamente os controlar, de lhes retirar poder onde o têm.
A rutura é paradigmática. Caminha-se na direção de uma falsa simetria entre trabalhador e empregador, vistos como partes iguais, que podem igualmente renunciar a algumas prerrogativas e dever definir com maior liberdade a sua relação.
Coerentemente, a ideia-força do Programa de governo e agora das propostas apresentadas, é o reforço da flexibilidade. O princípio subjacente é uma velha ideia liberal de promoção de equilíbrio entre as partes contratuais e, para além disso, de equilíbrio entre proteção do trabalhador (vista como excessiva) e flexibilidade contratual (vista como insuficiente).
É neste contexto que surgem ideias como a do combate à presunção de laboralidade, como se esta fosse um atentado ao direito à liberdade de um trabalhador ser trabalhador independente. Ou a peregrina ideia de que um trabalhador é um credor do seu patrão, quando este tem dívidas, a que pode renunciar livremente a qualquer momento, como se houvesse igualdade de poder económico entre um trabalhador que não recebeu um subsídio e o patrão que lhe paga o ordenado.
É ainda neste contexto que um primeiro contrato pode ser sempre a prazo desde que com um trabalhador de qualquer idade e com qualquer percurso profissional desde que nunca tenha tido um contrato sem termo.
O novo equilíbrio procurado vem legitimar os desequilíbrios pretendidos. Para isso, era necessário um bode expiatório, encontrado na ideia de que o modelo de regulação do trabalho, por ser protetor do trabalhador, gera segmentação no mercado de trabalho.
Esse alinhamento ideológico com a visão civilista do direito do trabalho é a mãe de quase todas as medidas de contrarreforma laboral, atacando especialmente a Agenda do Trabalho Digno, que foram apresentadas à discussão pública.
Para as defender o Governo está a recorrer a uma tática conhecida desde as análises do recuo do Estado Social com o governo Tatcher. Paul Pierson[1], explicou-nos que para legitimar recuos que apareceriam como inaceitáveis aos cidadãos uma das táticas era a “ofuscação”. No debate público estão já, lançados pelo Governo, dois dos seus recursos.
Um deles é a justificação das medidas com combate a “abusos” de direitos. Ou os grevistas que abusam do direito à greve ou as mães que abusam do direito a amamentar e outros casos que ainda aparecerão. Não importa que sejam casos ultraminoritários ou isolados. Servem para distrair do essencial que é a intenção de recuo. O recuo na proteção da parentalidade, o recuo na proteção do direito à formação, o recuo no direito à greve e os outros que com eles aparecem na contrarreforma laboral.
O outro é a introdução de pequenos “rebuçados” que tenham alguns ganhadores localizados, possam dividir os prejudicados, ou possam ser apresentados como tal. A possibilidade de comprar descanso não remunerado, apresentada como prolongamento do direito a férias é uma delas. Neste caso, com a perversidade acrescida de que o aumento dos dias de férias remuneradas é algo por que se tem conseguido por vezes na contratação coletiva. Haverá na proposta, outras melhorias localizadas para certos grupos que serão usadas no debate para contrariar que este ocorra em torno daquilo que efetivamente é o sentido desta intervenção laboral do governo: o recuo nos direitos dos trabalhadores.
Aos liberais que acreditam que a solução para as relações de trabalho é o regresso ao paradigma da igualdade entre as partes não podemos deixar de recordar que essa foi a base do desastre do capitalismo liberal da segunda metade do século XIX, com as insanáveis contradições da “questão social”, o empobrecimento generalizado dos trabalhadores numa sociedade que gerava cada vez mais riqueza. Esse foi o quadro social que gerou as reações críticas de setores tão dispares quanto os movimentos socialistas de vários matizes e a doutrina social da igreja.
A crítica mais acutilante que me lembro de ver escrita ao paradigma de que a anteproposta do governo se alimenta vem, aliás, de um padre dominicano francês da primeira metade do século XIX que conheceu bem a questão social, Henri Lacordaire, que a pronunciou em defesa do descanso semanal ao domingo, em favor das “vítimas da ganância pessoal e da ganância de um Patrão. É muitas vezes repetida, do domínio público, muitas vezes tem mal atribuída a sua autoria e reza assim: “entre os fortes e os fracos, entre os ricos e os pobres, entre o senhor e o servo é a liberdade que oprime e a lei que liberta”[2].
Quando a lei recua, prejudica a parte frágil da relação. É a estrada para a desproteção dos vulneráveis que a avenida liberal que o governo quer abrir. Veremos se é travado pelas instituições e pelo protesto popular ou se já somos, muitos de nós neoliberais no modo como entendemos o trabalho e esta ofensiva acabará bem-sucedida.
[1] Paul Pierson, Dismantling the Welfare State? Reagan, Thatcher and the Politics of Retrenchment, Cambridge University Press, Cambridge, 199
[2] Henri-Marie de Lacordaire, Conférences de Notre-Dame de Paris. Tome 3, années 1848-1850. Acessível em https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k6443581c.texteImage#
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