LAR DE S. JOSÉ, ÍLHAVO

Os primeiros 15 dias de abril foram assustadores com mortes quase diárias

Inaugurado em 1966, o Lar de S. José, estrutura residencial para idosos do Património dos Pobres da Freguesia de Ílhavo, viveu no mês de abril de 2020 o pior momento dos seus 54 anos de história e cuidados aos ilhavenses mais velhos. No penúltimo dia de março confirmava-se a entrada do novo coronavírus na instituição com a pior notícia possível: a morte de uma utente. O surto de Covid-19 que assolou a instituição de Ílhavo roubou 12 vidas e deixou sequelas emocionais em todos os utentes, trabalhadores e comunidade em geral.
“Foi a 30 de março que, através de um telefonema do Hospital de Aveiro, nos disseram que uma utente que tinha ido para lá de urgência falecera, sabendo-se no dia 31 que o resultado do teste à Covid-19 era positivo”, recorda Luís Oliveira, diretor-técnico do Lar de S. José, estrutura residencial para idosos do Património dos Pobres da Freguesia de Ílhavo.
O responsável não sabe como o vírus entrou, mas reconhece que, “os primeiros lares que tiveram surtos foram apanhados desprevenidos e com condicionantes diferentes das de hoje”.
Para Luís Oliveira, “por muito menos do que se sabe hoje, havia idosos com tosse, com um pouco de febre ou sintomas de gripe ou constipação todos os dias e a testagem era quase inexistente”.
No entanto, a instituição implementou, desde logo, todas as recomendações emanadas pela Direção-Geral da Saúde, suspendendo as visitas logo no dia 13 de março e cumprindo todas as regras que estavam impostas.
“Mas repare-se, hoje é obrigatório, mas nessa altura nem se usava a máscara de forma permanente”, afirma, sublinhando: “E tal era a nossa confiança versus desconhecimento até como a doença se manifestava, que precisamente no dia 30 entraria aqui uma equipa constituída por cerca de 13 colaboradores, para fazer um confinamento de 14 dias, supostamente para estar pronta para a fase do pico do vírus que seria ali por volta da primeira semana de abril. A nossa confiança era tanta de que estava tudo controlado que nesse dia entrava uma equipa para fazer esse confinamento. Nessa noite fui informado que a utente tinha testado positivo e regressei logo nessa noite à instituição. A equipa que cá estava ficou logo alarmada, mas, mesmo desconhecendo o que nos rodeava, ninguém saiu da instituição”.
A primeira ação tomada no dia seguinte foi “comunicar a todos os familiares dos utentes o que tinha acontecido e, de seguida, ainda sem testagem, verificar o estado de saúde de todos os utentes, avaliando sintomas e isolando os que necessário fosse, segundo o nosso plano de contingência”.
Para Luís Oliveira, uma arma importante para enfrentar o vírus está agora mais disponível, porque, “ao contrário de hoje, o nosso drama foi obter rapidamente a testagem para perceber a dimensão do surto”.
O problema, segundo o diretor-técnico, não está na entrada do vírus na instituição, mas na rapidez com que se ataca a situação. E para isso, os testes, agora mais fáceis de arranjar, são cruciais.
“O problema está na dimensão do surto, porque se este for controlado no início a instituição pode funcionar normalmente. Agora, se for um surto grande, já implica a saída dos negativos e outras alterações ao dia-a-dia da instituição. Por isso, é essencial controlar o surto logo de início e agora torna-se mais fácil pela maior facilidade em testar”, defende.
E no caso do Lar de S. José o surto foi grande. Em menos de uma semana todos os utentes e trabalhadores foram testados e o resultado indesejado: 39 utentes e 24 funcionários infetados. Os 15 utentes que testaram negativo foram transferidos para uma unidade hoteleira de Ílhavo e Luís Oliveira, juntamente com a funcionária Rosa Martins, iniciava uma jornada de 31 dias no interior da instituição. Foram sendo ajudados por outros funcionários e voluntários, mas os dois não mais saíram da instituição até o surto estar debelado.
Para Luís Oliveira, tendo a instituição condições físicas para cumprir as regras de isolamento, distanciamento e confinamento, como é o caso do Lar de S. José, “a permanência nas instalações dos utentes positivos e assintomáticos, com apoio clínico e havendo recursos humanos suficientes é uma boa opção”.
Sem esquecer o problema com a obtenção de equipamentos de proteção individual com que todas as instituições se debateram em março e abril, a falta de recursos humanos foi o outro grande problema que muitas instituições sentiram.
“E aí houve uma contradição de informações que até é difícil de explicar aos dias de hoje. Ou seja, houve informações de delegados de saúde que diziam que se o trabalhador estava positivo não havia problema de estar a lidar com utentes positivos, mas, por outro lado, havia quem questionasse como é que isso era assim dito de uma forma tão linear. Ninguém sabe a carga viral com que cada um está a lidar e quem está positivo tem que ir para casa fazer isolamento. Realmente, isso foi o que sentimos na altura”, sustenta, realçando o empenho e abnegação dos trabalhadores: “Mas nunca foi posto em causa o serviço e ninguém abandonaria os idosos, nem nunca deixaríamos entrar aqui uma equipa que os utentes desconhecessem por completo”.
Nesse sentido, Luís Oliveira e Rosa Martins cumpriram 31 dias de trabalho consecutivo, 24 horas por dia no interior da instituição.
“Todos os que ficámos, ninguém estava a pensar neles próprios. Eu nunca pensei que o novo coronavírus me ia matar ou fazer mal, nem a Rosa Martins, nem os outros que foram ficando connosco. A nossa preocupação não éramos nós, a nossa prioridade não era essa face ao que estávamos a ver e o que tínhamos para fazer”, começa por dizer, explicando: “O facto de haver Covid num lar não me preocupa, o que nos criava sentimentos e emoções, que nem são bons de lembrar, é a morte dos utentes. Naquela altura tivemos o falecimento de um dos nossos, como nós dizemos, quase diariamente. E esse era o fator que mais nos incomodava… Houve altura que chegados ao fim do dia havia funcionárias a perguntarem-me: ‘Mas será que eles vão morrer todos?’. Os primeiros 15 dias foram assustadores pelo desconhecimento do que estávamos a viver e pelo ritmo de óbitos que estávamos a ter. E óbitos muitas vezes de utentes que estavam perfeitamente assintomáticos e que em quatro, cinco horas dar-se um desenvolvimento trágico”.
E no caso de Ílhavo, oito dos 12 falecimentos aconteceram no interior da instituição.
Para não perturbar ainda mais os idosos, os responsáveis pela instituição optaram por omitir aos demais utentes as mortes dos seus pares.
É que entre os utentes a perceção do que se estava a passar era muito diferente.
“Podemos falar em três tipos de utentes: as pessoas que estão lúcidas e orientadas e que no primeiro impacto foram capazes de absorver a informação do que se estava a passar; depois, aquelas pessoas com alguma demência e falta de orientação e que, inicialmente, eram as mais difíceis de gerir e de fazê-las compreender o confinamento; e, por fim, os casos das demências mais graves e que não têm perceção do que está a acontecer. Com esses foi uma questão de gerir o dia-a-dia de forma diferente para nós, mas o mais igual possível para eles”.
Enorme influência sobre o estado dos utentes e que, de certa forma, influencia a sua perspetiva do que se passa, são as visitas dos familiares e amigos.
No caso do Lar de S. José, após a suspensão decretada pelo Governo, houve três meses de visitas, mas, entretanto, a autoridade da Saúde suspendeu as visitas no mês de outubro.
No entanto, “vamos retomá-las em novembro, depois de termos notado os efeitos que um mês sem visitas faz aos utentes”, alerta, explicando: “Fizemos uma avaliação concerta sobre a ausência de visitas e notámos uma influência bastante grande em termos emocionais e psíquicos. Para dar um exemplo, tivemos dois surtos psicóticos em utentes que aparentemente estavam estáveis. Só o facto de verem os familiares, mesmo que através de um vidro, faz uma diferença transcendente. Não há palavras para descrever o estado de espírito com que um utente fica após ver o seu familiar”.
Com a segunda vaga já a infetar Portugal, interessa saber que lições é, desde já, possível tirar do que aconteceu na primeira vaga da doença.
“Bem, muitas das medidas que a DGS tem emitido para o exterior têm servido para nos prevenirmos, ao contrário do que acontecia na primeira vaga em que o desconhecimento era maior. Essas medidas, com o maior conhecimento da doença, foram-se tornando mais concretas, definidas e exequíveis, porque numa primeira fase algumas não o eram. As informações agora são muito mais concretas”, começa por indicar, acrescentando: “Agora, a grande diferença, e voltando um pouco à primeira fase, é que a vida não parou. O principal perigo continua presente, que é a entrada e saída dos colaboradores na instituição. Não podemos eliminar esse risco, mas podemos apenas atenuá-lo, fazendo uma vida mais recatada fora da instituição. A vida não se coaduna com pedidos aos trabalhadores para ficarem fechados na instituição, porque a vida pessoal e familiar não coabita com confinamentos na instituição para reduzir os riscos. Assim, o principal ensinamento que tiramos do que vivemos é que, aos primeiros sintomas, devemos isolar e depois testar o mais rapidamente possível. Não tendo casos positivos há cinco meses, já realizámos 20, 30 testes a pessoas que evidenciaram algum sintoma e que foram isolados até testar”.
Para Luís Oliveira não há dúvidas: “O grande segredo da prevenção passa por isolar ao primeiro sintoma, testar e manter o isolamento”.
Esta alteração de procedimento acompanha, de certa forma, as alterações que o plano de contingência foi sofrendo.
“O plano de contingência está muito diferente do que era em março. Estaria a ser um pouco incoerente, depois de tudo o que se passou, se mantivesse igual o plano de contingência. Não poderia ser e todas as normas que foram emitidas tiveram que ser incorporadas”, assevera.
Depois de passar pela pior experiência profissional até ao momento, Luís Oliveira “gostava que isto que aconteceu realmente servisse para alguma coisa, mas às vezes duvido”.
Tirar lições desta nova realidade e implementar práticas mais adequadas é o desejo do diretor-técnico do Lar de S. José.
“Está a criar-se muita a ideia de que quando o vírus entra num lar é por negligência e isso não é a realidade. Não falando por todos, mas conhecendo muitos colegas de outras instituições e gostando muito do que faço, é mentira que toda a instituição que tenha um surto o tenha por negligência”, afirma, acrescentando: “E não falando em sorte e azar, há uma componente que não está no nosso controlo. Espero é que isto sirva para todos aprendermos. Nas instituições, todos temos que aprender com isto, mas há coisas que fogem às diretrizes das instituições e que têm que ser emanadas de quem nos tutela. Aí, espero que haja alguma mudança, que nos será imposta para melhor, mas há medidas que nem sequer passam pelos lares e que nos afetam a todos”.
Luís Oliveira não esquece os voluntários que se disponibilizaram a ajudar apesar dos riscos, deixa um agradecimento à comunidade ilhavense pelo enorme apoio que deu à instituição.
“A comunidade compreendeu o que estávamos a viver e ajudou-nos bastante, com materiais e mensagens de incentivo e apoio”, sustenta.

Pedro Vasco Oliveira (texto e fotos)

 

Data de introdução: 2020-11-05



















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