FRANCISCO GEORGE, PRESIDENTE DA CRUZ VERMELHA PORTUGUESA

É preciso mudar o paradigma de ataque à pandemia de Covid-19

Médico especialista em Saúde Pública, ex-diretor-geral da Saúde, o presidente da Cruz Vermelha Portuguesa alerta para a necessidade de se “mudar o paradigma” de ataque à pandemia Covid-19, que até agora tem sido essencialmente reativo, devendo-se adotar uma “estratégia preventiva”. Francisco George reconhece alguns problemas na seleção e recrutamento de recursos humanos para as Brigadas de Intervenção Rápida, mas assegura que têm sido contornados e sublinha que “sem esta resposta a situação nos lares seria muito mais preocupante”. Sobre a forma como o país tem atacado a pandemia nos lares de idosos, o médico especialista defende que se analise as situações onde as coisas correram bem para que se possam disseminar as boas práticas pelos lares que tiveram ou têm surtos ativos ou que não estão tão bem preparadas.
No âmbito de um protocolo estabelecido entre a Cruz Vermelha Portuguesa e o Instituto da Segurança Social (ISS), desde o início de outubro 2020 foram criadas as Brigadas de Intervenção Rápida (BIR) de apoio às Estruturas Residenciais Para Idosos que tenham surtos de Covid-19 e que necessitem de um reforço de recursos humanos.
Muitas instituições, perante os surtos de Covid-19, ficam carentes de trabalhadores que por infeção ou quarentena são obrigados a ficar em casa, não tendo condições para cuidar devidamente dos utentes, muitos deles também infetados ou não.
Francisco George, médico especialista em Saúde Pública, diretor-geral da Saúde entre 2005 e 2012 e, desde novembro de 2017, presidente da Cruz Vermelha Portuguesa (CVP), em conversa com o SOLIDARIEDADE, sublinha a necessidade de se “mudar o paradigma” de ataque à pandemia, abandonando-se a postura reativa e adotando-se uma estratégia mais preventiva.
À conversa juntou-se também Joana Picão, gestora da CVP do programa das Brigadas de Intervenção Rápida, para fazer o ponto da situação do mesmo, um mês volvido sobre a entrada em ação desta resposta de apoio aos lares de idosos vítimas de surtos Covid-19.

SOLIDARIEDADE – Como tem sido a resposta das Brigadas de Intervenção Rápida às necessidades reveladas pelas instituições?

FRANCISCO GEORGE (FG) – No geral tem sido muito positiva a resposta encontrada para as situações de emergência assinaladas pelas diferentes delegações distritais do ISS. A CVP tem respondido de uma maneira, diria, de forma satisfatória, mas tenho que reconhecer que, por vezes, aqui e ali, tem havido problemas com a falta de recursos humanos que nem sempre tem sido possível selecionar e recrutar. Este é um problema que muitas vezes tem sido ultrapassado, mas que tem que ser melhorado. Portanto, reconheço que a mobilização de recursos humanos tem que ser melhorada.

Deduzo, então, que tem havido dificuldades no recrutamento de pessoal para as BIR?

FG – Tem havido alguma…

Mas é um problema geral ou as dificuldades são no recrutamento em alguma categoria profissional específica?

FG – Temos que ter em conta que trabalhar em ambiente fechado em Covid não é fácil. E isto constitui um desafio, até em termos de coragem de cada um em dedicar-se ao assunto. Ainda por cima, como sabemos, a troco de remunerações que são limitadas e que não são atrativas proporcionalmente ao risco a que se submete a pessoa que decide integrar uma BIR. Há aqui uma constelação de obstáculos, relacionados, por um lado, com os riscos e com o receio da própria atividade epidémica e, por outro, com fatores que têm de ver com a deslocação para outros ambientes, longe da residência… Portanto, há aqui um conjunto de problemas que, apesar de tudo, têm sido ultrapassados, mas, sublinho, com dificuldades.

Mas, estando o país com a segunda vaga à porta ou já cá dentro e perspetivando-se que as BIR serão, de facto, necessárias, há já alguma estratégia para ultrapassar ou atenuar essas dificuldades no recrutamento de profissionais?

FG – Não, as dificuldades, primeiro, de seleção e, depois, de recrutamento, como lhe disse, estão relacionadas com uma constelação de fatores, entre eles a atração do próprio posto em si que é limitada em função proporcional à remuneração, depois há a deslocação para fora do ambiente de residência e ainda a questão do risco e do medo, muitas vezes desproporcionado em relação ao próprio risco… Há aqui dificuldades, mas, apesar de tudo, em muitos casos têm sido ultrapassados e vencidos. Mas, no conjunto, a resposta é positiva.

JOANA PICÃO (JP) – Acrescentava apenas que, face a essas dificuldades, também alargámos o leque de parceiros para nos ajudarem nesse recrutamento. E temos tido algum sucesso, mas o mercado também está muito esgotado, porque as próprias instituições estão a ver-se obrigadas a substituir alguns dos seus elementos, porque alguns adoeceram ou estão de quarentena. Perante esta situação de surto e de algum medo e até do mediatismo todo em volta das situações, algumas pessoas retraem-se, porque são doentes de risco ou têm familiares que o são. As próprias instituições já estão debilitadas e estão no mercado à procura de pessoal e o mercado não é infinito, pelo que tem havido algumas dificuldades. Mas, como disse o doutor Francisco George, a resposta tem sido bastante positiva.

FG – Mas atenção, sem esta resposta a situação dos lares teria sido bastante mais preocupante.

Um mês volvido sobre a entrada em ação das BIR, no início de outubro, qual é o ponto da situação?

JP – Neste momento em que falamos, dia 28 de outubro, já tivemos 34 brigadas ativas, num conjunto de 55, ou seja, já foram desmobilizadas 21, porque resolvidas as situações as brigadas regressam ou são mobilizadas para outra instituição. Assim, neste momento temos 34 brigadas no terreno, atuando em situações de surto, mas ainda temos equipas de retaguarda. Essas 34 BIR integram 183 recursos humanos das diversas categorias profissionais. Como se sabe, a ativação de uma brigada resulta de uma solicitação do Centro Distrital da Segurança Social (CDSS), mas nem todas as instituições que estão em surto solicitam a intervenção das BIR. Sempre que uma instituição faz um pedido de BIR é o CDSS que valida o pedido. Primeiro, faz uma avaliação da situação e, depois, em conjunto com o Delegado de Saúde e, eventualmente, com a Proteção Civil, se for caso disso, faz uma análise à situação no seu todo e faz o pedido à Cruz Vermelha para ativação de uma brigada constituída por X elementos, de determinadas categorias profissionais. Aí, a Cruz Vermelha responde na medida do possível. Por vezes, no imediato, pode não ter logo as pessoas que são solicitadas, mas temos dado resposta muito prontamente. E reforço, esta resposta tem sido crucial porque algumas instituições, por causa do surto, ficam com grandes défices de pessoal e é fundamental que existam pessoas para cuidar dos utentes que se mantêm, positivos ou não, e que continuam a precisar de cuidados diários. É preciso garantir isto e estas brigadas têm-no feito. Sem estas brigadas estávamos com um problema mais difícil de gerir.

Então, as BIR só são ativadas por solicitação e existe pessoal em «stand by» na retaguarda. No entanto, há poucos dias o presidente da Câmara da Guarda queixou-se de que, caso tivesse sido necessária, não havia uma BIR para atuar numa determinada instituição que viveu um surto…

JP – Bem, a Guarda e Beja são os dois distritos onde tem sido mais difícil recrutar pessoas. Neste momento, em Beja temos pessoas que foram deslocadas de Bragança, de Braga, de Leiria e do Algarve, porque não conseguimos pessoal no distrito. Nas mais de 20 pessoas que temos em Beja, só duas são do distrito. E na Guarda estamos também com alguma dificuldade, mas hoje o cenário já é mais positivo. Continuamos a recrutar, mas se for preciso mobilizamos pessoas de outros distritos. De facto, da Guarda solicitaram-nos um enfermeiro, cinco ajudantes de ação direta e um auxiliar de serviços gerais e nós conseguimos quatro ajudantes, falta a quinta, não conseguimos o auxiliar e o enfermeiro está em processo de recrutamento. O comentário terá sido que não respondemos na totalidade, o que é um facto.

Então, a solicitação de uma BIR é um pedido tipo «à la carte», ou seja…

JP – É à medida das necessidades.

Ou seja, não há brigadas modelo, mas sim equipas formadas à medida das necessidades específicas da instituição?

JP – As categorias profissionais que estão previstas são médicos, psicólogos, enfermeiros, ajudantes de ação direta, que são quem cuida diretamente do idoso, e auxiliares de serviços gerais, que é mais limpeza e copa. Está também previsto integrar assistentes sociais no caso de o diretor-técnico ter que estar ausente. A maioria dos pedidos, diria 90%, é para enfermeiros e ajudantes de ação direta. Temos também tido pedidos de médicos, psicólogos e assistentes sociais a que também temos respondido. Os enfermeiros e os ajudantes de ação direta, no fundo, são as duas categorias que garantem o dia-a-dia da instituição, daí haver mais pedidos. O médico e o psicólogo são para casos mais específicos e concretos e os assistentes sociais também, pois vão substituir as direções-técnicas, mas, felizmente, não tem sido recorrente… No entanto, também está previsto!

Doutor Francisco George, como vê o panorama dos lares, depois do que já assistimos na primeira vaga da Covid-19?

FG – Infelizmente, nós estamos a responder muito na dimensão reativa e isso é mau. Deve constituir uma lição para todos nós. Todos aqueles, em especial, que cuidam da proteção da população idosa, devem tirar lições do que tem acontecido. É preciso mudar o paradigma, é preciso mudar de estratégia, é preciso antecipar os problemas. Os lares tinham que ter planos de contingência, mas exequíveis. Para serem exequíveis, têm de poder mobilizar os meios necessários e previstos no próprio plano. Porque o plano não é apenas um documento, não são frases articuláveis, um plano é sistema que implica a mobilização de meios quando necessário. E nem sempre assistimos à efetiva entrada em vigor de um plano e da concretização das medidas previstas nesse contexto. Portanto, há aqui uma falha! Não interessa agora perceber se este ou aquele tem responsabilidades civis ou outras, interessa é tirar lições concretas do que pode ser feito, não só no contexto da segunda vaga, mas no futuro, para estas situações não voltarem a acontecer.

Mas pensa que as coisas poderão ser diferentes com a chegada da segunda vaga?

FG – Não, porque o paradigma é o mesmo. O próprio conceito de brigada é um conceito reativo. É o conceito de apagar um fogo! Não é um conceito que tenha em atenção a necessidade de não haver fogo, é um conceito reativo e que prevê uma resposta a uma questão que surge e que devia ter sido evitada.

Mas o grande desconhecimento sobre a doença não justifica de alguma forma essa situação?

FG – Eu estou a transmitir o meu pensamento. Nós hoje não podemos dizer que, no conjunto, o parque de lares em Portugal estivesse bem protegido. Não estava… muitos não estavam, mas outros estariam, provavelmente a maioria, a verdade é que, naqueles em que surgiram problemas, as medidas tomadas foram todas reativas. É preciso ter em conta esta questão da mudança de paradigma e estudar e analisar o porquê de em muitos lares não terem surgido problemas dessa natureza. Ou seja, ver ao contrário, ver a boa prática, ver o que correu bem. Na Cruz Vermelha temos infraestruturas que correram muitíssimo bem… Estou a falar de Macieira de Rates, perto de Braga, que não teve nenhum caso e isso tem de ver com medidas preventivas tomadas por antecipação e é um caso a estudar como boa prática. Como muitos outros! Há muitos outros que correram bem, agora é preciso analisar a razão pela qual neste correu bem, onde os idosos estão protegidos, e noutros não. Essa é que é a questão de fundo. Este não é um problema que tenha sido ateado a todos, há os que correram bem, têm boas práticas, e outros que não observam normas de boas práticas.

E com a segunda vaga aí, vislumbra já alguma mudança no paradigma ou nem por isso?

FG – Até diria que, em termos concretos, já não há tempo para mudança de paradigma, porque já estamos na segunda vaga. A segunda vaga veio cavalgar a segunda fase da primeira vaga e, naturalmente, muitas das medidas já deviam ter sido tomadas por antecipação. Não em todos, não no parque nacional dos estabelecimentos de residência para idosos, mas naqueles que não estavam devidamente preparados.

JP – Quero apenas acrescentar que um facto com que nos temos deparado é que esta pandemia traz ao de cima as fragilidades do próprio sistema e este conjunto de instituições, lares e afins, mesmo antes da Covid já viviam uma situação ao nível dos recursos humanos muito à pele. Em muitas, bastava um funcionário pôr uma baixa prolongada e já havia ali um problema. E o facto de estar tudo tão à pele a pandemia lança o caos nessas instituições, quando, de repente, metade dos funcionários tem que ir de quarentena ou fica positiva! E não é apenas um ou dois funcionários, que já cria problemas, de repente são 10! E o facto de, antecipadamente, estas estruturas terem, muitas delas, sobrevivido com este rácio de funcionários já muito à conta, veio agora agravar essas situações. E nem é só a questão de haver muitos idosos positivos que se torna alarmante, é no corpo de funcionários haver um grande número de baixas que impossibilite o cuidado àquelas pessoas, que até podem estar todas negativas.

Ao que sabemos, está para ser estabelecido um protocolo entre a CNIS e a Cruz Vermelha. Qual o propósito?

FG – Temos o maior interesse nesse protocolo. Nenhuma instituição do sector social deve trabalhar isoladamente. O isolamento é inimigo da eficiência. Devemos colocar na linha da frente a preocupação da cooperação, da complementaridade. Não há nenhum tipo de concorrência entre as instituições do sector social. Este sector tem a particularidade de não ter fins lucrativos e de observar princípios humanitários, portanto, tem de estar em concertação na perspetiva de, em conjunto, melhorar as respostas.

E como tem sido essa articulação até agora entre a CVP e as instituições e os seus representantes, como a CNIS?

FG – Não tem problemas. A colaboração com todas as instituições sociais é um princípio básico do trabalho da CVP, sejam instituições pequenas, sejam misericórdias de dimensão variada. A Cruz Vermelha Portuguesa é uma frente do sector social.

E esse protocolo será, então, no sentido de agilizar essa articulação?

JP – Exatamente, servirá para agilizar esta articulação entre as instituições e, através da CNIS, acelerar essa articulação com as IPSS agilizando a intervenção das brigadas.

O doutor Francisco George foi diretor-geral da Saúde durante sete anos, como avalia o trabalho feito pela sua sucessora no cargo, numa altura em que muita gente lhe critica a comunicação?

FG – Por princípio e razões de ética que se compreendem, eu não posso, de forma alguma, comentar, aplaudir ou criticar as ações da minha sucessora. Ninguém compreenderia que eu, como seu antecessor direto, analisasse publicamente as ações da minha colega Graça Freitas. Não fiz, não faço, nem nunca farei. Por ora, no final deste processo é preciso olhar para trás, com duas lupas: uma no plano político, porque os políticos têm de responder, em termos políticos, por aquilo que fizeram; e outra lupa, na dimensão científica, e aqueles que tomaram decisões sem fundamentação científica terão igualmente que responder. Se tiver oportunidade, irei participar neste processo, mas só mais tarde. Agora, a olhar para a frente não posso avançar com análises desse tipo.

No entanto, conhece bem as implicações do cargo. Perante tanto desconhecimento sobre a doença e o vírus, esta é uma missão muito espinhosa para quem está no cargo de diretor-geral da Saúde? Tira muitas noites de sono?

FG – Sem dúvida, essa parte posso confirmar. A minha colega tem sido incansável e nenhum português deixará de reconhecer a sua dedicação.

Dá nota positiva à forma como o país tem atacado a pandemia?

FG – Só posso dar uma nota no final do processo. Mais uma vez, olhando para trás, como cidadão e como especialista posso dar contributos para, no final, explicar o que correu bem e o que é criticável ou não. Agora, também devo dizer que há uma sede própria, em que participo, para dizer aquilo que penso antes dos desastres acontecerem. E essa sede é o Conselho Nacional de Saúde Pública, que é composto por 20 personalidades. E é lá que digo o que penso, não em público. Como cidadão e médico especialista tenho o cuidado de comunicar na sede própria e não publicamente aquilo que penso e as recomendações que dou.

Como especialista, como perspetiva os próximos tempos?

FG – Com preocupação, mas com confiança.

Isto é mesmo um bicho danado, não é?

FG – Não, não é… Os vírus não são bichos! Estamos perante uma pandemia nova e ainda não sabemos o que vai acontecer, portanto, o que sabemos é que estamos confrontados com um problema e temos que o enfrentar com confiança, até porque não é a primeira vez que o mundo vive uma situação destas. Em 1980 surgiu um problema, que muitos ignoraram, e estou a referir-me à SIDA. Temos que ter confiança, porque o conhecimento do homem e a ciência são suficientemente fortes para contornar o problema.

Pedro Vasco Oliveira (texto e fotos)

 

Data de introdução: 2020-11-05



















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