O dinheiro tal como o conhecemos está obsoleto.
O dinheiro atual é dinheiro físico (notas e moedas) ou dinheiro desmaterializado, por exemplo, contas bancárias, mas remível em dinheiro físico.
Há um par de anos surgiram as bitcoins, também chamadas cripto-moedas, o primeiro “dinheiro” totalmente digital, isto é, que não tem existência física (apenas existe enquanto registo num qualquer sistema informático) nem é convertível em notas ou moedas.
Claro que as bitcoins podem ser trocadas por dinheiro físico, mas não da forma a que estamos habituados, por exemplo, com os depósitos bancários.
Se tenho um depósito de 100 euros e o quiser levantar devolvem-me 100 a menos de qualquer custo administrativo. Se tiver bitcoins que hoje valem 100 euros e as converter em euros amanhã podem já não valer os 100 euros – podem valer mais ou menos dependendo da evolução das cotações. Não são dinheiro como o concebemos hoje.
As cripto-moedas não são o futuro do dinheiro por variadíssimas razões algumas das quais talvez excessivamente técnicas para serem tratadas num espaço como o que acolhe esta crónica.
Há, contudo, uma razão muito simples – se o mundo tivesse que viver apenas com bitcoins, o consumo de energia dos sistemas informáticos de suporte seria superior à capacidade produtiva total do planeta.
As cripto-moedas serão no futuro aquilo que já são hoje, ou seja, um nicho para especuladores e sobretudo para criminosos para quem a confidencialidade do dinheiro é fundamental.
Mas isso não significa que o dinheiro continue como está. O atual sistema de pagamentos, essencialmente pendurado no sistema bancário, está obsoleto. É caro, ineficiente e, quando estão em causa transações internacionais é caríssimo e ainda mais ineficiente. Por outro lado, temos a tendência para esquecer que há muitos milhões de pessoas no planeta sem acesso a sistemas bancários.
O setor privado, sempre atento às oportunidades, já desenhou uma solução para ultrapassar uma das características negativas das cripto-moedas – a inerente instabilidade do valor. São as “stablecoins”, numa tradução literal, moedas estáveis.
A proposta que deu mais brado nesta matéria foi o projeto LIBRA, promovido por várias empresas da área tecnológica, mas onde sobressaía a Facebook.
Basicamente tratava-se de dinheiro digital, dinheiro que só existe enquanto registo em sistemas informáticos, mas cujo valor estaria respaldado por um conjunto de ativos financeiros, nomeadamente depósitos em diferentes moedas. Claro que os câmbios entre as moedas sobem e descem e, por isso, o valor da LIBRA quando expresso nas modas nacionais poderia variar, mas, em princípio, seriam sempre mudanças marginais.
O projeto LIBRA foi de alguma forma prejudicado pela má fama da Facebook e do seu líder Mark Zuckerberg até porque a sua apresentação coincidiu com a altura em que circulavam notícias sobre os vários escândalos que envolveram a rede social.
Não sei o que vai acontecer ao projeto LIBRA – tanto quanto sei a Facebook ainda não atirou a toalha ao chão. Contudo, ainda que o projeto fracasse, não duvidemos que a marcha para o dinheiro digital é imparável.
O mundo vai evoluir, mais depressa do que se pensa, para o dinheiro digital. Sobretudo por uma razão – os bancos centrais, percebendo os riscos de entregar esta matéria apenas nas mãos da iniciativa privada, estão, eles próprios, a trabalhar em projetos de dinheiro digital, dinheiro do bom com a retaguarda do estado.
O banco central mais avançado na matéria é o banco central da China, o PBoC. Não nos admiremos excessivamente da liderança da China neste domínio. A China chegou tarde à “financialização” moderna das economias e, consequentemente, não tem o lastro das incumbências e dos obstáculos que sempre ficam do passado.
A China, por exemplo, praticamente saltou a etapa do chamado dinheiro de plástico. Os cartões de crédito nunca foram muito populares na China. Por lá passou-se diretamente para os sistemas de pagamentos baseados em telefones inteligentes que dispensam o plástico dos cartões tão populares entre nós. No ocidente este processo vai ser mais lento porque temos a infraestrutura do dinheiro de plástico construída e existe o hábito de usar cartões como base dos pagamentos.
Ainda sabemos pouco sobre o projeto do PBoC para o dinheiro digital. Inicialmente falava-se que seria unicamente aplicável no mercado interbancário, ou seja, para regularização de contas entre bancos em montantes de grande valor.
Contudo, sabemos agora que estão já em fase experimental, em algumas cidades chinesas, plataformas de pagamento em dinheiro digital emitido pelo PBoC para particulares.
Aparentemente trata-se de criar concorrência séria aos dois sistemas gigantescos que floresceram na China e que são operados pela Alibaba (gigante do comércio eletrónico) e pela Wechat (rede social), ou seja, de dar aos bancos comerciais, que ficaram um pouco a leste deste processo, a possibilidade de ter um papel relevante nos pagamentos digitais.
Também o BCE tem um projeto ambicioso nesta área. O BCE publicou recentemente um documento para discussão pública sobre o tema e que vale a pena visitar.
Embora nenhuma decisão esteja tomada nesta matéria, a discussão pública prolongar-se-á até meados de 2021, tudo aponta para que a decisão seja de avançar com a criação do euro digital.
Os argumentos a favor são fortes.
A tendência universal é para o declínio do uso de dinheiro físico como meio de pagamento.
Se a união monetária se atrasar nesta matéria, o euro pode ser prejudicado em favor de outras moedas, públicas ou privadas, de dentro ou de fora da zona euro, que ofereçam sistemas de pagamento digitais competitivos. Se o euro tem como objetivo afirmar-se como uma das moedas de reserva globais não pode ficar para trás nesta corrida.
Por outro lado, acredita-se que a transição para o dinheiro digital aumentará a eficácia dos mecanismos da política monetária.
Finalmente a digitalização do dinheiro é apenas uma faceta da transição digital global na qual a Europa pretende ter um papel de liderança.
É claro que as dúvidas e os espaços por preencher também são muitos. Um dos temas fundamentais ainda em aberto é o da estrutura tecnológica e operacional. Uma possibilidade seria o euro digital funcionar sobre “contas” dos cidadãos e das empresas nos livros do próprio BCE, contudo, há quem acredite que os intermediários financeiros, nomeadamente os bancos, devem ter um papel relevante
Por isso a abordagem do BCE é cautelosa.
Tão cautelosa que, para minimizar as fricções da transição, um eventual euro digital não vai levar à extinção das notas e moedas – estas continuarão a circular lado a lado com o equivalente digital para conforto dos mais atávicos. Igualmente está prevista a possibilidade de o euro digital poder funcionar offline.
Há ainda um longo caminho a percorrer até que as notas e moedas sejam uma relíquia bárbara.
Mas não tenho dúvidas que o dinheiro digital estará por aí algures entre o meio e o fim da década atual. Pode agora fazer-nos um pouco de confusão, mas um dia, menos longínquo do que se pensa, ainda haveremos de nos perguntar porque diabo durante tanto tempo se usaram as sebentas e anti-higiénicas notas e moedas como dinheiro.
Não há inqueritos válidos.