À semelhança do que se passou com os idosos impedidos de frequentarem os centros de dia e de convívio, também as pessoas portadoras de deficiência sofreram consequências com o encerramento dos Centros de Atividades Ocupacionais (CAO) que ainda hoje não foram recuperadas, apesar da reabertura da resposta social no início de junho último. Igualmente, as instituições da área da deficiência tiveram que se adaptar e reinventar para continuarem a apoiar os seus utentes à distância e, tal como todas as outras, com o reinício das atividades presenciais viram os custos crescer, em especial com as exigências sanitárias e os transportes. Os presidentes da Humanitas e da Federação das Associações Portuguesas de Paralisia Cerebral deixam no SOLIDARIEDADE o retrato do que foi o encerramento e, posterior, reabertura dos CAO, dois meses e meio depois, com Abílio Cunha a deixar uma, mais do que pertinente, questão: “Gostava de saber o como e quando a população com deficiência será integrada no Plano de Vacinação da Covid-19 [pelos vistos prevista apenas para a terceira fase]”?
Desde que a pandemia de Covid-19 se abateu sobre Portugal, o foco e atenção da maioria das pessoas tem estado nos idosos, provavelmente o grupo de maior risco face à nova doença, mas outros grupos populacionais há que também estão na primeira linha de perigo, como é o caso das pessoas portadoras de deficiência.
Sem grandes casos trágicos nos lares residenciais, as instituições da área da deficiência tiveram também que se adaptar e recriar para poderem continuar a apoiar os utentes das demais respostas sociais, especialmente os dos Centros de Atividades Ocupacionais (CAO).
Com a resposta suspensa a partir de 16 de março de 2020, à semelhança das creches, infantários e centros de dia e de convívio, entre outras, as instituições tiveram que se reinventar e adaptar o apoio para ser feito à distância. Foi uma paragem de cerca de dois meses cujas consequências têm demorado bem mais a recuperar.
Como refere Abílio Cunha, “o ano de 2020, para as associadas da Federação das Associações Portuguesas de Paralisia Cerebral (FAPPC) foi um período de constantes adaptações e mudanças em praticamente todas as suas rotinas”.
A pandemia da Covid-19 trouxe ao universo das pessoas com paralisia cerebral “um notório constrangimento a nível de atividades diárias, de acompanhamento na área dos cuidados de saúde e, como quase generalizadamente, também no que concerne aos relacionamentos e à proximidade com amigos e familiares”, afirma o presidente da Direção da FAPPC, elogiando “a forma atenta e interventiva” como as associações de todo o país responderam aos novos desafios.
“Foi uma realidade ingrata para toda a sociedade, mas para as pessoas com deficiência este novo paradigma da Covid-19 mostrou-se muito mais ‘violento’ e preocupante”, sublinha.
Esta é uma situação extensível às pessoas portadoras de deficiência intelectual, que também tiveram que ficar em casa, muitas vezes sem perceberem o que se estava a passar.
Podemos lembrar que os CAO encerraram as suas atividades presenciais no dia 16 de Março e retomaram-nas dois meses e meio depois e, apesar dos jovens apoiados continuarem a ter a presença de retaguarda destas estruturas, verificaram-se perdas irreparáveis que ainda não se conseguiram colmatar, como consequência da inatividade física e intelectual a que estes utentes estiveram sujeitos durante esse período”, sustenta Helena Albuquerque, presidente da Humanitas - Federação Portuguesa para a Deficiência Mental, acrescentando: “Perderam-se rotinas ao nível do raciocínio, autonomia, higiene e alimentação. Em alguns casos, verificaram-se alterações na saúde física e motora devido à falta de estimulação. E, em termos cognitivos, verificámos algumas perdas ao nível do vocabulário e da memória em que os utentes apresentavam dificuldade em se expressar utilizando as palavras ou nomes corretos em determinadas situações”.
Segundo a presidente da Humanitas, “a nível da saúde mental dos nossos utentes, os efeitos sentidos com a suspensão da atividade de CAO foram dramáticos, pois alguns não conseguiram perceber o sentido do confinamento, assim como da perda do contacto visual e presencial com as pessoas significativas, resultando num aumento de alterações de comportamento e chamadas de atenção no contexto familiar”.
Também nas pessoas com paralisia cerebral, a inatividade dos CAO implicou sérios danos.
“Vertente fundamental para as pessoas com deficiência, os CAO sentiram fortemente o impacto desta nova realidade. E, por tal, é legítimo que os clientes e utentes desta valência se ‘queixem’ da forma como decorreu o ano de 2020 e do muito que lhes foi impossibilitado de fazerem”, afirma Abílio Cunha, especificando: “Além do isolamento, que a todos afetou, em relação às pessoas com paralisia cerebral notou-se uma regressão a nível de competências sociais, motoras e cognitivas. Houve uma notória perda de autonomia e aumento de dependência de muitas pessoas com paralisia cerebral”.
Cientes de que esta realidade ganhava terreno, as instituições, tanto da deficiência intelectual como da paralisia cerebral, saíram das instalações e, física ou virtualmente, mantiveram-se junto dos seus utentes, em especial daqueles com retaguarda familiar mais frágil.
Para Abílio Cunha, “descobriu-se um novo mundo das videochamadas e dos encontros pela Internet” e, “só quando foi possível, e com distanciamento ou salvaguardas, se retomaram as visitas”, mas “os meios digitais foram uma grande ajuda neste encurtar de distâncias”.
No universo das instituições associadas da Humanitas, “inicialmente, foram identificadas as situações mais prementes de ajuda, nomeadamente, ajuda alimentar (foram fornecidas diariamente refeições a todas as famílias dos utentes que careciam deste apoio), acompanhamento diário por impossibilidade familiar (foram colocados colaboradores nos domicílios em acompanhamento diário sempre que não existia suporte familiar), apoio na área da saúde, por exemplo, as situações que careciam de apoio da diabetes ou ajuda na administração da medicação foram apoiadas diretamente ou com a ativação de redes de suportes da comunidade, realização de apoios terapêuticos online ou por deslocação dos técnicos ao domicilio e apoio familiar (acompanhamento psicológico e ocupacional do agregado familiar).
Manter o apoio aos utentes e auxiliar as famílias durante a suspensão das atividades de CAO foi o objetivo das instituições, cientes das dificuldades que os agregados familiares atravessavam.
“Cada família, na sua especificidade, foi lidando com as questões relativas quer à pandemia propriamente dita, quer ao relacionamento da mesma com a presença dos seus filhos/representados em casa. Algumas famílias adaptaram-se com grande facilidade, para outras a adaptação foi gradual, mas para outras ainda a situação revestiu-se de contornos dramáticos, havendo ainda, neste momento, sequelas graves da situação gerada pela quebra de rotinas, dos hábitos e ritmos de vida, até ali dados como adquiridos”, reporta Helena Albuquerque, que acrescenta: “Cremos que a nossa proximidade às famílias foi determinante para a forma como foram vivenciando uma realidade desconhecida e sempre em mudança”.
A estratégia utilizada pelas instituições foi o contacto telefónico semanal, sendo que do outro lado da linha o que mais se ouviu dizia respeito sobretudo “à saturação dos seus filhos pelo facto de estarem confinados em casa”.
Já no universo das instituições da paralisia cerebral, “as principais reações que nos foram chegando, e ainda chegam, das famílias são em relação às incertezas quanto ao futuro”, refere Abílio Cunha, que destaca ainda “o enorme elogio às direções e equipas das instituições” referidos pelos familiares e que o presidente da FAPPC faz questão de retribuir: “Também as famílias, pela forma como encararam tudo, foram um grande suporte e apoio neste complicado período”.
Retomadas as atividades no início de junho, as instituições tiveram que se adaptar novamente, implementando as alterações necessárias ao cumprimento das regras sanitárias impostas.
Segundo Abílio Cunha, no universo das associadas da FAPPC, “tem sido uma constante sensibilização dos clientes/utentes e, também, das famílias, considerando ainda que “a adoção destas novas medidas foi rápida e assegurou, sempre, os devidos cuidados a nível de saúde pública”.
Para Helena Albuquerque, os CAO reiniciaram as atividades presenciais adaptando-se à nova realidade que se vive neste momento.
“Não foi uma adaptação fácil e envolveu da parte das estruturas diretivas e dos colaboradores um esforço muito grande de implementação de novos hábitos, novas rotinas, novas maneiras de estar, a bem da segurança de todos. Houve necessidade de reorganizar atividades, grupos e salas e introduzir novos comportamentos sociais e de exteriorização de emoções”, refere a líder da Humanitas, acrescentando que, “neste momento, a situação está tranquila com exceção dos nossos utentes que realizavam Atividades Socialmente Úteis (ASU) no exterior e que se encontram impossibilitados de continuar este trabalho por indicações da tutela”.
Esta questão já foi levantada pela Humanitas à secretária de Estado para a Inclusão das Pessoas com Deficiência, “chamando a sua atenção para as perdas irreparáveis que estas pessoas estão a ter, tanto no que toca à sua autonomia como à sua inclusão social”.
Aliás, esta não é a a única crítica que ambos os líderes das federações associadas da CNIS fazem às entidades públicas, no âmbito da pandemia.
“Desde março têm aparecido alguns casos de infeção por Covid-19 e não podemos deixar aqui de lamentar a postura de algumas autoridades de saúde que, muitas vezes, não têm respondido adequadamente a estas situações, provando desconhecer a realidade e a gravidade que um surto desta natureza pode atingir nas nossas estruturas de apoio. O contacto com os delegados de saúde é muitas vezes difícil e a testagem pouco abrangente”, acusa Helena Albuquerque.
Mas também Abílio Cunha deixa duras críticas, especialmente no que toca à vacinação.
Dando nota da sua preocupação quanto ao futuro, questiona: “Gostava de saber o como e quando a população com deficiência será integrada no Plano de Vacinação da Covid-19? Do que leio do Plano de Vacinação recentemente divulgado, depreendo que as pessoas com deficiência integrarão apenas a terceira fase... O que, no mínimo, é lamentável!”.
O responsável pela FAPPC sinaliza a “prontidão na adaptação das respostas sociais por parte das associações de paralisia cerebral” e lamenta o facto de, genericamente, as pessoas com deficiência terem ficado “votadas a um lamentável esquecimento e sem voz, a nível governamental, que as representasse”.
No sentido de atenuar os efeitos da pandemia nas instituições, também elas sobrecarregadas com custos em termos de aquisição de equipamentos de proteção individual, de produtos de higienização, mas essencialmente no que ao transporte dos utentes diz respeito, ambos os dirigentes reclamam mais meios para poderem apoiar devidamente os seus utentes.
“Em resultado da pandemia é mais do que evidente a necessidade de reforço a nível de recursos humanos para se respeitar o rácio colaboradores/clientes. Por outro lado, verificou-se, também, que este necessário afastamento físico veio confirmar a necessidade de mais e melhor material tecnológico facilitador da comunicação”.
Já para a presidente da Humanitas, “a situação está normalizada”, apontando duas exceções: “Os clientes que ainda se encontram em confinamento nos lares, os que por situação de maior morbilidade não têm frequentado os CAO por decisão das famílias e os ASU externos que não têm ido às empresas”.
Perante isto, e para a normalização do funcionamento, Helena Albuquerque considera “ser necessário, fundamentalmente, não haver regras gerais, mas poderem ser tomadas medidas ajustadas às características de cada indivíduo”.
Por outro lado, “o prolongado confinamento nos lares de alguns utentes de CAO está também a ser preocupante, pois começam a apresentar evidentes sinais de abatimento psicológico e depressão devido ao isolamento a que têm sido sujeitos”, aponta.
Com um mais do que provável novo confinamento geral no horizonte – à hora de fecho desta edição ainda nada de concreto havia emanado do Governo –, a presidente da Humanitas defende que, “em caso do confinamento geral, os CAO também devem encerrar”, até porque “é urgente encerrar o país, duas a três semanas para que os hospitais possam recuperar da situação de rutura a que estão a chegar”.
No entanto, “se houver apenas um fecho parcial do país, com escolas abertas, penso que os CAO devem permanecer abertos, até para servirem de suporte às famílias”, argumenta a líder da Humanitas, sublinhando: “Há alturas da vida em que o sentimento coletivo deve sobrepor-se ao sentimento individual e este é um desses momentos”.
Pedro Vasco Oliveira (texto)
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