Há um par de meses publiquei neste espaço uma crónica a que dei o título “Quem Tem Medo Da Inflação?”.
Por essa altura os mercados financeiros começavam a mostrar algum nervosismo relativamente à possibilidade de um surto inflacionista sério nas economias de capitalismo avançado.
De certa forma os mercados foram prescientes.
Desde maio que a inflação nos Estados Unidos não baixa de 5%, na zona euro a última leitura já está próxima dos 5% e, na austera Alemanha, o último registo mensal é de 6%
De onde vem isto? Porque sobem tanto os preços? Este surto inflacionista é transitório ou vai continuar por um período considerável de tempo?
Quanto às causas, possivelmente vêm de dois lados. De um deles podemos estar seguros, do outro nem tanto.
A parte em que podemos estar seguros é o resultado de deslocações e disfunções de oferta e procura causadas pela crise sanitária.
Ninguém ignora que, em virtude da crise sanitária, nalguns setores temos excesso de procura em relação à oferta enquanto noutros se passa o contrário.
Por exemplo, a procura de componentes eletrónicos é muito superior à capacidade de produção a nível global. O mesmo se passa com a capacidade de transporte marítimo.
Já setores como a aviação, a hotelaria e tudo o que esteja ligado ao turismo estão justamente na situação oposta.
Há um outro elemento que ficou com oferta curta – trabalhadores. A pandemia, por razões as mais diversas, retirou muitas pessoas da força de trabalho. Quando a economia começou a reabrir, as empresas, subitamente, depararam-se com uma grande escassez de trabalhadores disponíveis.
O número de trabalhadores que apresentam a sua demissão nas empresas americanas está em máximos históricos. Isso acontece porque há muitos empregos disponíveis.
Estas causas episódicas ligadas com a gestão da crise sanitária não são contestadas por ninguém – estão no domínio das evidências empíricas.
Mas há um outro lado, de potencial geração inflacionária, que é muito mais contencioso.
Há quem acredite que o surto inflacionista também tem que ver com as consequências da política fiscal e monetária, as quais estão em modo expansionista como nunca se viu em tempos de paz. Ou seja, há quem pense que as colossais injeções de dinheiro nas economias, seja pelos bancos centrais seja pelos governos, está a juntar-se às causas episódicas e a puxar os preços para cima.
Como olhar para a situação?
Há duas perspetivas: a dos tranquilos e a dos nervosos.
Basicamente os tranquilos dizem que não passa nada e que este surto é transitório. Se as causas são as deslocações e as disfunções na oferta e procura causadas pela crise sanitária, à medida que esta for estando controlada, as coisas voltarão ao normal.
Os nervosos dizem que não é bem assim. Desde logo porque nem tudo vem da pandemia e, por outro lado, mesmo que a pandemia explicasse tudo, nem por isso estaríamos livres de perigo.
É que, finalmente, tudo depende do tempo que durar o “transitório”. Se o “transitório” for suficientemente longo para desancorar as expetativas inflacionistas, podemos ter um surto autoalimentado que pode durar muito tempo e atingir valores elevados.
Tudo, em última análise, depende das expetativas e da forma como estas se manifestam nos comportamentos dos agentes económicos.
Naturalmente que não há dinâmica inflacionista se as expetativas estão ancoradas. Isto é, se todos concordarmos que daqui a um ano tudo volta ao normal, absorvemos o choque e seguimos tranquilos. O problema surge quando temos a expetativa de que os preços vão continuar a subir sustentadamente. Então, empresas e trabalhadores começam a agir em conformidade, isto é, os trabalhadores tentando obter salários nominais mais altos, as empresas procurando refletir os aumentos dos custos nos preços que praticam.
Nesse quadro o processo pode entrar em modo de autoalimentação, ou seja, ficar fora de controlo.
Que podemos dizer sobre o ancoramento das expetativas inflacionistas?
A evidência empírica disponível mostra-nos uma curiosa dissonância entre os eruditos e o “povo”.
Os indicadores dos mercados financeiros mostram que investidores sofisticados esperam inflação a 5 ou a 10 anos no intervalo de 2 a 3%.
Os grandes bancos centrais preveem que em menos de um ano tudo terá voltado ao normal e os economistas profissionais que, por dever de ofício, vão publicando previsões, também acreditam no carácter transiente do atual surto inflacionista.
Curiosamente esse não é sentimento popular. O índice de confiança dos consumidores nos Estados Unidos, medido pela universidade de Michigan, está em mínimos de 10 anos, justamente devido a receios com a inflação. A expetativa da inflação dos consumidores americanos é de 5,7% a um ano.
Na Europa a degradação do sentimento dos consumidores é similar.
Em matéria de expetativas os “eruditos” em economia e finanças bem como os investidores sofisticados estão tranquilos, o “povo” está nervoso.
Claro que o nervosismo do “povo” resulta, em parte, de um fator, porventura episódico, que é a subida forte dos preços da energia e, em particular, dos combustíveis. Está provado que a dinâmica dos preços dos combustíveis tem uma influência desproporcionada na perceção da inflação pelos consumidores.
Mas, no fim do dia, a questão do milhão de euros persiste: quem tem razão? Os tranquilos ou os nervosos? Este surto nos preços é transitório ou permanente?
A resposta a esta questão tem consequências importantes.
Se os banqueiros centrais acreditarem que o surto inflacionista é passageiro não haverá necessidade de mudar significativamente o curso da política monetária.
Contudo, se num determinado momento começar a ficar claro que a subida dos preços veio para ficar, podem os banqueiros centrais ser obrigados a subir prematuramente as taxas de juro com as consequências que todos conhecemos.
Para já não vemos “nervosismo” nem da Reserva Federal americana nem no BCE.
A Sra. Christine Lagarde continua a dizer-nos que uma eventual subida das taxas de juro da zona euro em 2022 é pouco provável.
Nos Estados Unidos o presidente da Reserva Federal continua tranquilo, mas é cada vez menos assertivo. No último depoimento perante o Congresso deixou subtilmente cair o carácter “transitório” do surto inflacionista.
Não existe a bola de cristal que nos diga o que se vai passar com as taxas de juro daqui a um semestre ou daqui a um ano. O que podemos dizer é que a probabilidade de perturbação nesta frente é hoje bem maior do que era há um par de meses. Já ninguém de bom senso pode excluir a possibilidade de uma travagem às quatro rodas nos estímulos monetários num futuro não muito longínquo.
Segurem-se!
Não há inqueritos válidos.