Nesta altura é impossível que não aborde o tema que a todos nos inquieta, a guerra. O início de década vinte deste século trouxe-nos, logo no princípio, o medo e a insegurança provocada pelo surto pandémico que varreu todo o mundo. Ainda a pandemia não estava resolvida e surge de modo inopinado uma guerra para a qual a maioria dos europeus pensava que nunca mais aconteceria, pelo menos, tão perto de nós. De repente, o mundo mudou muito e o que era impensável apenas escassos dias atrás tornou-se realidade. A barbárie voltou ao terreno europeu, o que não acontecia desde a II Guerra Mundial. A ofensiva da Rússia não tem poupado alvos civis, os canais televisivos e os jornais mostram imagens e transmitem notícias arrepiantes. Mais de um milhão de refugiados ucranianos procura abrigo noutros países. E tudo em nome da vontade de um déspota que quer dominar um País e um povo que, democraticamente e por uma larga maioria, tomou a opção por pertencer a um mundo livre.
Nesta guerra, o que está em causa é alguém que quer impedir pelo uso da força que um País e um povo possa viver numa sociedade em paz e liberdade. A paz, a liberdade e a solidariedade foram os valores essenciais que moldaram a génese do projeto europeu. Lembremo-nos que esse projeto nasceu de uma oração em que se rogava “guerra, na Europa, nunca mais”. Essa prece foi ouvida e houve, nesse tempo, a capacidade e o génio de transformar essa oração num projeto político, que carreou excelentes resultados para o velho continente. Para além da paz e liberdade foram consagrados nas sociedades europeias outros valores como a solidariedade, a democracia, o respeito pelo Estado de direito, a igualdade perante a lei e alcançaram-se progresso sociais que eram no tempo inimagináveis.
Os europeus do norte são culturalmente diferentes dos europeus continentais e dos europeus do sul. Têm passados históricos, culturas e raízes distintas. Mas souberam da experiência da guerra criar um modelo social baseado naqueles valores e construíam uma identidade europeia que se identifica através do sentimento de pertença a esse modelo. A resposta que governos e povos europeus têm dado nestes dias à tentativa de ocupação da Ucrânia não é mais do que a afirmação dessa identidade, desse sentimento de pertença inteligentemente conquistado, do qual os europeus não querem abdicar.
É sabido que no desenvolvimento do projeto de integração política europeu nem sempre as coisas se desenvolveram no melhor dos mundos. Nesse percurso houve contradições, impasses, crises e, nalguns momentos, vozes credíveis expressaram o seu ceticismo sobre a viabilidade da União Europeia. No entanto, nesta segunda década do século XXI a Europa está a mostrar que o projeto europeu está bem vivo.
Em primeiro lugar, porque a União soube dar uma resposta muito coordenada e eficaz no combate à pandemia, tanto no aspeto científico a apoiar decididamente as investigações para a descoberta de vacinas, na coordenação de esforços entre poderes públicos e privados como, sobretudo, nas medidas de natureza económica que tomou para minorar os efeitos económicos e sociais nos Estados Membros. Em segundo lugar, a reação da União Europeia à guerra iniciada pela Rússia foi muito rápida e várias medidas foram aprovadas com muito poucas hesitações, o que não é normal na política europeia. Em escassos dias foram aprovadas pesadas sanções económicas que congelaram as reservas que a Rússia tem fora do seu território; foi decidido bloquear o acesso dos bancos russos ao sistema de pagamentos internacionais; a União Europeia decidiu fazer compras de forma conjunta de armas para ajudar a Ucrânia a defender-se; a Alemanha tomou uma decisão, ao arrepio do que tem sido a sua política de décadas, de investir 100 mil milhões de euros na sua política de defesa e, todos os países europeus que pertencem à NATO, já anunciaram idêntico propósito de reforçar os seus orçamentos de defesa. E tudo isto aconteceu com o apoio generalizado de praticamente todas as forças políticas, em todo o espaço europeu.
No nosso País, a exceção foi o Partido Comunista Português que continua preso a visões ultrapassadas e acaba por apoiar um regime em que corrupção e censura são uma realidade numa sociedade em que abundam personalidades que acumularam fortunas gigantescas à custa de negócios que lhes foram proporcionados pelo poder político chefiado por Putin.
Desde a II Guerra Mundial que, na Europa, um Estado não invadia outro com o único propósito de anexar o seu território. O último protagonista que o fez foi Adolfo Hitler. Passadas que são quase oito décadas é Putin que decide invadir um território de outro Estado, contra todas as normas de direito internacional e foi censurado praticamente por todos os países do mundo. Mas muito mais significativa e importante que tenha sido a tomada de posição política dos Estados, foi a expressão generalizada, bem visível e audível da opinião pública de norte a sul do planeta a condenar a invasão da Ucrânia. Agustina Bessa Luís escreveu: “vemos, lemos e ouvimos” e eu acrescento: sentimos e, nalguns casos, formamos opinião, mais ou menos fundamentada. Foi que aconteceu agora com a grande maioria dos europeus.
Falta saber como é que tudo isto vai acabar. Depois da II grande Guerra ter terminado com centenas de milhares de vidas ceifadas de forma violenta, houve quem tivesse jurado que guerra na Europa nunca mais poderia acontecer. Essa jura foi agora quebrada. Tenho a esperança que a quebra dessa jura vai ser passageira. O sonho dos povos que querem viver em paz, em liberdade e em solidariedade tem muita mais força do que se pode imaginar. Foi essa força que construiu a Europa de hoje. É essa força que agora se levanta maciçamente. Será essa força, esse sentimento de pertença de ser europeu que acabará por derrotar Putin.
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