Não há ambição pelo poder que se possa considerar legítima. O caminho a percorrer é sempre tortuoso e avança-se sem qualquer tipo de escrúpulo. Ter poder e dinheiro são duas das mais frequentes e desmesuradas ambições humanas. A ambição pelo poder é tão antiga quanto a existência da criatura humana. É isso mesmo que pretende demostrar a civilização judaico-cristã, servindo-se de um episódio, não real, que se refere à ambição de Adão e Eva (Cfr. 3, 1-7). A conquista do poder pode levar a atitudes criminosas. Há indivíduos que chegam a ter procedimentos tão desumanos que quase tocam a bestialidade.
Este tipo de situações são contrárias à condição humana. Os viventes racionais foram criados, intrinsecamente, para o bem, apesar de também conterem em si predisposições que contrariam essa natural inclinação para o amor. A Natureza tem potencialidades e limites. No que diz respeito aos humanos, de acordo com vários fatores, pode fixar-se mais no seu estado de hominização e não evoluir para a condição de ser pessoa, ou seja, de “ser-com-os-outros”. Esta evolução acontece na medida em que a segunda acompanha a primeira, desde a sua gestação. Daí a importância da qualidade relacional dos progenitores e do ambiente que os rodeia. O respeito pela dignidade humana é para onde convergem todos os valores humanos. Há dois fundamentais: o amor e a liberdade. Esta, conjugada com a razão, suscita atitudes ao bem próprio e ao bem comum. Não se pode dissociar a liberdade da responsabilidade. É importante também que um coração bom se construa no equilíbrio entre a liberdade e a razão. Se esse equilíbrio não acontece, o bem que se faz pode resultar de uma emotividade reativa, suscitada por emoções repentinas, que fazem o coração sobrepor-se à razão. Valores como a solidariedade, a compaixão, a doação de si e de bens, podem, assim, confundir-se com comiseração que esmorece quando arrefecem as emoções.
Esta reflexão, tem como fundamento os dramáticos sofrimentos que se abateram sobre o povo ucraniano. O uso irracional da liberdade por parte de um homem e dos seus correligionários são os causadores desta barbárie. Esqueceram que, apesar da cultura predominante se basear muito no individualismo, o humanismo não é tão escasso como possa parecer. A par com a ignomínia em curso, há evidências de que o bem não se deixa enfraquecer por ela. A onda de solidariedade, impregnada de tanta criatividade de esforços assentes em corajosas sinergias é uma dessas evidências. As ações a nível político, empresarial, social, monetário, de forma coletiva ou individual, são outras. A União Europeia está a provar que tem condições para regressar aos seus princípios fundantes, alicerçados na solidariedade, na equidade e na coesão. Outros países, entenderam que sós, não se salvarão. Alguns setores económicos estão a compreender que a obtenção de lucro a qualquer preço tem consequências nefastas. As instituições sociais, sanitárias, religiosas puderam demonstrar a razão inquestionável da sua existência. Muita gente está a dar provas de que, se quisermos, gestos de solidariedade se podem tornar numa cultura de solidariedade. Isso poderá ver-se melhor quando os “holofotes” da comunicação social retirarem da sua agenda o que tem sido agora a sua prioridade máxima.
É desejável que a recolha de bens se faça com a garantia de transporte para os lugares de destino em tempo oportuno. Que seja doado só o que se saiba ser o mais necessário e em condições respeitadoras da dignidade dos destinatários. Que se conte sempre com o conhecimento e apoio das diferentes comunidades ucranianas. Elas têm uma missão imprescindível, agora e na fase de acolhimento dos que estão a chegar e dos muitos que se diz virem. Até se ter a noção clara do tempo que pode durar o conflito armado, há que investir em boas condições de acolhimento, com tempos de ocupação útil do tempo (pode não ser propriamente um emprego), com uma compensação monetária equivalente, por exemplo, ao RSI; com a criação de atividades culturais e recreativas que possam apresentar em diferentes lugares do país; com a visita a museus e outros lugares emblemáticos no nosso país… Ainda é cedo para se cuidar de uma necessária inserção. Salvo, se for pedido o estatuto de refugiado no âmbito da legislação vigente.
As IPSS, como sempre, serão chamadas a dar o seu imprescindível contributo. O corpo de voluntariado que integram não poderá ficar de fora, mas ser complemento em tarefas já quotidianas e reforço para as que vierem a ser acrescidas.
É importante lembrar que esta dramática situação não é inédita. Outro país, também com ganâncias de poder, teve procedimentos iguais. Entre vários, recordo a invasão do Iraque, com justificações infundadas. Todos estas trágicas agressões a juntar a uma “economia que mata”[1], são sinais que o Mundo necessita de uma nova ordem mundial. Ela pode começar, desde já, com encontros de “Educação para a paz”. Os valores humanos não se ensinam, educam-se. Seria uma boa iniciativa a ser assumida pela CNIS junto das suas filiadas.
Que se calem as armas russas e assim criem condições para que também emudeçam as ucranianas. Que as palavras mais pronunciadas, agora, por todos nós sejam: paz, diálogo, solidariedade, compaixão, libertação. Que estas palavras sejam credibilizadas, mesmo quando os “holofotes” se apagarem, por ações condizentes.
[1] Cfr. FRANCISCO, Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (24 de novembro de 2013), Lisboa: Paulinas Editora e Secretariado-Geral do Episcopado 2013, 53.
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