Tinha oito anos quando ocorreu a crise dos mísseis em Cuba. Era demasiado novo para perceber o que se passava. Não obstante, o meu entendimento infantil foi suficiente para realizar o extraordinário do tempo, que algo de grave se passava. Recordo-me do estado ansioso dos adultos, das conversas mono temáticas e rumorosas (naquele tempo não era prudente falar da União Soviética em voz alta) e de umas quantas imagens que a televisão foi passando.
Volvida uma quinzena de anos, já adulto, estava a participar em manifestações pela paz.
Mais uma vez tratava-se de uma crise de mísseis só que, agora, o local de instalação não era o distante Caribe, era a boa, velha e próxima Europa e o putativo alvo já não era a América, era a Mãe Rússia.
Por essa altura, no mundo livre estávamos divididos sobre a forma como lidar com a ameaça soviética. O lema para alguns era “antes vermelhos que mortos”, para outros, pelo contrário, não havia alternativa credível ao equilíbrio do terror para conter o risco de uma conflagração mundial.
Mais uma quinzena anos e o impensável aconteceu. O muro de Berlin estava a ser demolido por martelos pneumáticos, a União Soviética implodia com estrondo e respirámos fundo – tínhamos ganho, já não havia ameaça!
Nessa ilusão vivemos trinta anos. Alguns iludiram-se ao ponto de decretar o fim da história.
Agora, a visão das cidades destruídas da Ucrânia, os milhões de desalojados, as incontáveis vítimas dos combates, acordam-nos para a dura realidade, para um tempo em que muitas das ilusões que conformaram a nossa mundivisão estão a ruir, uma após outra.
A primeira grande ilusão a cair, que está na base de alguma tradição da esquerda europeia, filia-se na corrente filosófica que vem de Jean Jacques Rosseau a qual, basicamente, acredita que o bem é natural e que o mal, cuja existência não pode ser negada, é artificial, é o produto de uma sociedade viciosa.
Não, não, o bem não é natural. “O Senhor das Moscas”, o mais conhecido livro de William Golding, prémio Nobel da literatura, mostra como mesmo crianças entregues a si mesmas em estado natural, se transformam em monstros capazes de dominar, explorar e maltratar os seus semelhantes.
O bem implica vigilância e luta permanente, o bem dá trabalho, o bem não é natural. Se queremos viver numa sociedade pacífica e próspera temos de estar preparados para a defender, porventura à custa de sangue.
Uma segunda ilusão é a do primado da economia.
Quisemos acreditar que uma sociedade de bem-estar mais ou menos globalizada seria uma espécie de seguro de vida para a paz.
Num mundo em que a prosperidade material depende de cadeias de valor disseminadas no espaço global, em que qualquer rutura dessas relações complexas pode pôr em causa o nosso sossego e bem-estar, parece não haver incentivos para o isolacionismo ou para a agressão ao outro. O preço a pagar seria demasiado alto!
As guerras seriam, nesta perspetiva, coisa de pobres. Acontecem na Etiópia, na África Central, nas selvas colombianas, ou seja, justamente onde as vantagens económicas da grande unificação ainda não chegaram, onde as pessoas têm muito pouco ou nada a perder.
Como podemos ver agora, não é assim.
A economia não é tudo. O nacionalismo, os instintos identitários (ou mesmo tribais) não desapareceram subsumidos pelas vantagens económicas do mundo globalizado.
É certo que a Rússia não é um país rico. O PIB per capita da Rússia é sensivelmente metade do per capita português. A economia russa vale 1,4 triliões de dólares, pouco mais do que a economia espanhola, sendo que a Rússia tem o triplo da população do nosso vizinho.
No entanto, para os russos que viveram o colapso económico dos anos noventa do século passado, a situação atual é incomparavelmente melhor. Essa relativa prosperidade depende, obviamente, da abertura ao mundo até porque, no caso da Rússia grande parte da economia depende da exportação de energia.
Resumindo, os russos fazem parte dos que têm muito a perder se a complexa teia da economia global for posta em causa. Os dirigentes russos sabem muito bem disso e, não obstante, não hesitaram em pôr tudo em causa em nome do que julgam ser a necessidade de lavar a honra da Mãe Rússia.
As nações não morreram!
Outra ilusão a desfazer-se em pó por estes dias é o fim da história, ou seja, a ideia de que a evolução natural das sociedades humanas vai no sentido da democracia liberal.
Basicamente acreditávamos que com o progresso científico, tecnológico e económico, as sociedades humanas tenderiam naturalmente para democracias liberais.
Francis Fukuyama, o conhecido filósofo americano, defendeu essa tese num livro famoso “O Fim da História e o Último Homem”.
Na verdade, não se conhecia nenhuma sociedade em que o PIB per capita tivesse superado os 15.000 dólares e não fosse uma democracia. O caso da Coreia do Sul parecia exemplar. À medida que o progresso económico se tornou mais sólido o regime foi evoluindo de autoritário para uma democracia liberal e funcional.
Essa ilusão levou-nos a pensar, por exemplo, que o ascenso económico da China poderia ser encarado de forma benigna pelo ocidente. Não havia qualquer risco. No final das contas, quando a população chinesa fosse suficientemente próspera, quando uma classe média ilustrada forte fosse emergindo do progresso económico, veríamos uma ânsia de liberdade e, naturalmente, uma democracia liberal substituiria o estado totalitário chinês.
Como nos enganámos. O PIB per capita da China já superou o per capita russo, continua a crescer a um ritmo que permitirá chegar ao limiar mágico dos 15.000 dólares dentro de menos de uma década. Não obstante o que vemos não é a aproximação a um modelo liberal, pelo contrário, a vertente totalitária está a ser reforçada, o recentramento da China é uma realidade que, provavelmente, os acontecimentos na Ucrânia não vão deixar de acelerar.
Não sei dizer-vos o que vai sair desta guerra.
No curto prazo não tenho dúvidas que todos vamos pagar um preço elevado pela agressão russa à Ucrânia. Carestia, escassez, eventualmente, estagflação, ou seja, uma combinação tóxica de inflação e desemprego pode estar inscrita nas cartas.
No longo prazo uma nova ordem vai nascer. Temo bem que os que por cá andarem para nela viver, olhem um dia para o tempo das nossas ilusões como uma era dourada em que um sonho bonito pode ser vivido.
Talvez não tenha passado disso mesmo, um sonho!
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