PADRE LINO MAIA, PRESIDENTE DA CNIS

Este governo tem que cumprir o Pacto de Cooperação para a Solidariedade

O padre Lino Maia é presidente da Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade desde 2006. Já é o líder que mais tempo leva à frente da CNIS. O pároco de Aldoar, Porto, tem tido um papel relevante no relacionamento do sector social com o poder político, seja ele qual for, sobretudo pela capacidade de enaltecer e dignificar junto do Estado a importância do Sector Social Solidário. Tem conseguido grandes conquistas, liderando, de forma quase impercetível, esse grupo da Economia Social nas negociações com os diferentes governos. Foi o caso recente da revisão do Pacto de Cooperação para a Solidariedade, trave-mestra da solidariedade organizada em Portugal. Lino Maia, apesar do difícil contexto político, económico e social, não tem dúvidas que o executivo, que deve liderar o país nos próximos quatro anos, vai cumprir a promessa que está escrita nesse Pacto concebido há 25 anos e revisto agora.

JORNAL SOLIDARIEDADE – Está empossado o governo. Na área social há uma alteração que o surpreendeu pela negativa: o fim da Secretaria de Estado da Ação Social.
PADRE LINO MAIA – De algum modo estava a prever que a secretaria de Estado a continuar a existir mudasse de lugar e viesse para junto do Ministério, deixando de estar deslocada na Guarda. O que pensava é que não iria ser dissolvida. Foi uma decisão do primeiro-ministro para diminuir o número de secretarias de Estado e aquilo que estava a ser desenvolvido pela secretária de Estado passa a ser assumido pela ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social. Direi que não há alterações significativas. A ministra está por dentro do sector, foram dois anos e tal, difíceis por causa da pandemia, mas ela está dentro dos assuntos. Estou confiante.

Sempre defendeu a criação do Ministério dos Assuntos Sociais...
Ainda não foi desta. Penso que o primeiro-ministro procurou organizar um governo ágil e, como nestes próximos tempos a Saúde ainda vai obrigar a uma atenção muito forte, ele quis manter esse ministério autónomo. A situação que estamos a viver, agora com a guerra na Ucrânia, vai obrigar o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social a ser bastante interventivo. Foi uma opção. No entanto, continuo a defender que seria bom termos um Ministério dos Assuntos Sociais que englobasse as várias áreas, articulando melhor entre si os diversos ministérios.

Têm sido anos difíceis por causa da pandemia e agora a guerra. As instituições ainda têm capacidade para responder às novas dificuldades das pessoas?
O que tem que ser feito é cumprir o que está no Pacto de Cooperação para a Solidariedade. O Estado tem de comparticipar as instituições significativamente, mais do que faz agora. É intenção deste governo reconhecer e valorizar os trabalhadores deste sector. Há, neste momento necessidades maiores, como o aumento dos custos de combustíveis, que afetam grandemente as instituições. Fiz uma sondagem e o panorama é mau. Só para dar um exemplo: há uma IPSS em Mogadouro em que diariamente, só para o SAD, percorre 910 quilómetros. Imaginem o que significa isto no aumento dos custos. Nós vamos pugnar para que haja um apoio significativo às instituições por causa destes aumentos dos combustíveis e energia. Na alimentação também há aumento significativo de custos por causa dos transportes e da escassez de bens. É necessário ter isto em atenção o quanto antes. Não acredito que haja uma adenda muito antes do mês de julho. Houve já uma pequena atualização em janeiro, mas foi pelo facto de não haver Orçamento de Estado. Julgo que na adenda a atualização terá que ser considerável até para que se comece a pôr em prática o Pacto de Cooperação. Para além disso, nós precisamos de apoios extraordinários por causa da situação em que a pandemia e agora a guerra nos colocam. 

O governo avançou com compensações às famílias e consumidores por causa dos recentes aumentos de preços de energia e combustíveis. Acha que devia fazer o mesmo com as instituições?
Essas ajudas são simbólicas. 60 euros, uma vez só vez, não representa nada. E não ajuda as instituições que têm um aumento de custos brutal. Há um aumento ordinário que tem de acontecer, repito, tendo em atenção o Pacto de Cooperação, e tem de haver apoios extraordinários nestas conjunturas. Espero que a paz que todos desejamos venham a normalizar os preços, mas até lá precisamos de ajuda.

Para já as instituições estão, outra vez, na linha da frente do acolhimento aos refugiados ucranianos. Qual é o ponto de situação?
Tem havida uma grande disponibilidade. A CNIS fez um apelo junto das instituições, as autarquias fizeram o mesmo, coordenando algumas iniciativas, a própria Segurança Social tem feito alguns contactos. Do apelo que a CNIS fez houve uma adesão muito grande com apoios muito diversificados. Desde o acolhimento de pessoas, com emprego e residência, à coordenação de serviços com vista à integração dos ucranianos nas várias comunidades. Há instituições a liderar o processo de ensino do português. Há quatro grandes manifestações de apoio: emprego com qualidade, tendo em conta o perfil dos refugiados, alojamento, integração nas comunidades e com outros serviços e o ensino do português.

Houve uma reação imediata da sociedade. Há alguma coordenação geral? Estão previstos apoios para as IPSS?
As IPSS disseram logo que sim sem quaisquer garantias. Segundo o último levantamento que fiz, 11 distritos estavam a acolher refugiados. Os ucranianos estão a vir muito mais para o litoral. O Alto Comissariado para os Refugiados está a coordenar, o SEF e o IEFP estão no processo, mas nota-se algum voluntarismo, compreensível, que nos obriga a redobrada atenção. O que está previsto é que haverá apoio aos refugiados. O que se está a pedir às IPSS é que empreguem, acolham, ajudem. É o que se está a fazer. É certo que estivemos sem governo. Nos próximos dias vamos, seguramente, conseguir estabelecer formas de apoio para as instituições tendo em consideração mais esta disponibilidade.

Deixou de se falar de pandemia, mas ela continua a existir.
Sem aquela expressão que teve há um ano, mas continuam a aparecer casos de infeções, com menor gravidade, há a gripe fora de tempo, agora a guerra, foi o período da troika... as instituições nunca tiveram um momento de descanso. As IPSS estão habituadas a enfrentar estas situações, são uma boa resposta, mas vivem com muitas dificuldades.

Tem defendido um imposto social e uma reconfiguração fiscal para este sector. Em que consiste?
Não se trata de criar mais nenhum imposto. Falamos na consignação de um imposto à proteção social. As necessidades aumentam por causa designadamente do aumento da esperança de vida sem qualidade. Não é expectável que haja aumento de produção da riqueza por via do aumento da percentagem da população ativa. Temos que olhar para esta realidade. É aqui que entra a pertinência da consignação de um imposto. Eu acredito que no próximo ano possa ser contemplado. Assim como a receita dos jogos sociais da Santa Casa que deveria servir de forma mais consistente para ajudar a ação social. E junto aqui a revisão do regime fiscal das instituições. Ora, isto tem implicações no Orçamento de Estado. Foram questões abordadas com o primeiro-ministro, com quem temos insistido, e já havia consenso entre os vários partidos de que era importante a revisão do regime fiscal. O primeiro-ministro não se comprometeu oficialmente, mas percebi que ele quer que esta questão seja encarada de frente no orçamento de 2023. Quando falo na revisão do regime fiscal estou a pensar na questão do IVA, por exemplo. As instituições tal como as autarquias prestam serviço público. Serem equiparadas às autarquias é justo e lógico. Significaria uma diminuição de custos considerável.

25 anos depois o Pacto de Cooperação para a Solidariedade foi revisto. Ficou escrito o compromisso da partilha dos custos das valências. Com uma maioria absoluta é mais fácil cumprir o que está assumido pelo Estado?
Acredito que sim. Este governo não precisa de fazer tantos jogos de cintura. É de um partido só e foi o líder desse partido, que era e é o atual primeiro-ministro, que mostrou grande compreensão e vontade de assinar a revisão do Pacto e de consagrar uma comparticipação equitativa por parte do Estado a este sector. Disse-o ainda antes da assinatura, antes das eleições e vai mantê-lo agora. Não tenho nenhuma razão para não acreditar. Se há uns anos estas instituições eram vistas como “de caridade” agora são pilares do Estado Social e agentes insubstituíveis da proteção social. Já não vejo em nenhum partido qualquer reserva em relação a este sector. Na tomada de posse o primeiro-ministro Antónia Costa falava da Solidariedade Social e do Sector Social e Solidário como um instrumento fundamental na resiliência, recuperação e construção de uma sociedade mais igual e mais justa.

Quando e como é que se vai aplicar o Pacto?
Quando se fala de uma contribuição equitativa por parte do Estado, os tais 50 por cento, devo ressalvar duas situações. Há valências em que tem que ser muito superior, como é o caso das instituições de apoio a pessoas com deficiência, ou o caso dos Lares de Infância e Juventude, em que não há possibilidade de outras comparticipações e a ajuda tem que ser feita na íntegra. Há outra situação que tem que ver com o facto de a situação não ser igual em todas as valências. Há algumas em que a comparticipação do Estado anda na ordem dos 25 por cento, Centros de Dia e ATL’s por exemplo, e outras em que andará nos 35 por cento, como é o caso das ERPI. Portanto, a atualização não será igual em todas as valências. Convém ainda esclarecer que a atualização para os 50 por cento não será feita de uma só vez. Não é possível. A comparticipação neste momento andará pelos 36 por cento em relação aos custos que se verificam presentemente. Se apostarmos na qualificação e na qualidade, sobretudos nas valências que lidam com idosos, na valorização dos trabalhadores com melhores salários, prevejo que estes 50 por cento são a meta de uma legislatura. Nós vínhamos de uma tendência de diminuição da comparticipação do Estado ao sector social solidário. Nota-se que desde 2019, muito ligeiramente, estancou-se essa tendência. Foi o efeito de duas medidas adotadas no Compromisso de Cooperação: a atualização de 3,5 por cento, um pouco acima do aumento da inflação e aumento do salário mínimo, e a questão da consideração das frequências totais que, desde que não desçam significativamente, mantêm a comparticipação na integra. Em 2020 a atualização foi de 3,5 por cento e de mais 2 por cento para valências de idosos e deficiência; em 2021 foi de 3,6 por cento com reforço para valências mais deficitárias. A tendência inverteu-se. Foi resultado de negociação em que intervieram as quatros organizações mais importantes do sector com liderança da CNIS e União de Misericórdias. É um caminho que tem que ser aprofundado. Acredito mesmo que este governo vai ter isso em atenção.

Sempre defendeu a valorização dos trabalhadores deste sector. É um objetivo para os próximos tempos?
Tem que ser. Eu costumo dizer que nós estamos a obrigar os trabalhadores das IPSS a praticar a caridade e somos injustos. A questão é que não se pode, não se consegue, pagar melhor nas circunstâncias em que estamos. Os trabalhadores não são problema são solução para as instituições e têm que ser valorizados e reconhecidos. Neste momento, quando há um aumento do salário mínimo são logo cerca de 55 por cento de todos os trabalhadores que são abrangidos. A massa salarial tem um impacto enorme nos custos, na ordem dos 60 a 70 por cento. Há 20 anos o salário mínimo correspondia a um terço do salário máximo; hoje está nos dois terços.  O salário máximo médio de gente com qualificações superiores, com muito tempo no sector, pouco aumentou na última década e anda na ordem dos 1.200 euros. Agora o salário mínimo está acima dos 700 euros. Houve um achatamento. Nós temos, por uma questão de justiça e reconhecimento, que rever tudo isto para valorizar todos os trabalhadores.

Quanto aos dirigentes, considera que o modelo da disponibilidade voluntária continua a ter futuro?
Eu espero que prevaleça. O facto de os dirigentes na sua quase totalidade serem voluntários, pessoas das comunidades, muitos deles que terminaram carreiras profissionais, aposentados, válidos e dedicados a causas, é muito importante. Uma das grandes virtudes das nossas instituições, até por comparação com outros países, está nos dirigentes voluntários que fazem da sua disponibilidade uma razão para viver com qualidade. Os diretores técnicos são profissionais, vamos tendo gestores nas IPSS, mas a alma, para mim, é bom que sejam os dirigentes voluntários.

Em que passo está o relacionamento com as autarquias? Na descentralização de competências algumas têm recusado aceitar a Ação Social.
O processo da descentralização não está a ser bem conduzido. Muitas autarquias consideram-no um presente envenenado porque representam um aumento da despesa. Quando falamos nesta área social estamos a falar de quatro competências: proteção social, o CLDS, SAS e acompanhamento do RSI. As instituições têm vindo a prestar estes serviços. Recrutaram trabalhadores, montaram as operações. De repente, passarem estas competências para as autarquias traz problemas às IPSS que, na desativação desses serviços, terão muitos custos. As quatro organizações do sector social foram insistindo, até através de uma carta que enviaram a todos os autarcas, para que aquelas autarquias que assumissem essas delegações de competências celebrassem acordos para que as situações existentes se mantivessem. Julgo que ainda vai haver alguma revisão nesta matéria. Há necessidade de uma articulação maior entre autarquias e instituições de solidariedade. São ambas realidades de proximidade com um ideal comum que é o serviço das populações. Todos os autarcas reconhecem a importância das IPSS, mas precisamos de uma forma de articular melhor, talvez a celebração de um protocolo. Já há diálogo com a Associação Nacional de Municípios e a Associação Nacional de Freguesias.

Como estão as relações entre a CNIS e a Igreja de que faz parte?
Noto que alguns sectores da Igreja, talvez pela diminuição de agentes da pastoral e pelos custos que estas instituições representam, estão com vontade de desincentivar uma tão forte presença da Igreja no social. Por ser padre e estar envolvido na CNIS permito-me dizer que uma parte da boa imagem da Igreja em Portugal é por estar tão empenhada como está no social. Há um tripé que é muito importante: a ação litúrgica, a ação evangelizadora e a ação sócio caritativa. Se a Igreja abandonar o social por um lado perde visibilidade e por outro perde algo que é, para ela, fundamental. O homem é o caminho da Igreja. Não se pode esquecer os mais carenciados, os idosos, as pessoas com deficiência. Vou insistindo que não é obrigatório que os 1099 centros sociais paroquiais, um dos grupos da presença da Igreja, tenham o mesmo figurino jurídico. Podem ter natureza associativa em vez de fundacional e não terem que ser necessariamente dirigidos por padres. Nesses casos os padres não têm que se desligar dos utentes, que têm sempre que acompanhar, e devem manter-se como garantia de fidelidade dos centros sociais paroquiais à doutrina social da Igreja e matriz cristã. No país não há ainda muitos exemplos, mas já temos alguns em que os leigos dirigem os centros sociais paroquiais.

Tem, portanto, muito trabalho em mãos para os próximos tempos...
Eu não sou o dono disto tudo... Eu sou apenas um dirigente entre os dirigentes. Gosto muito deste sector, mas com a responsabilidade que tenho isto não se pode prolongar por muito mais tempo. Talvez seja a hora de pensar-se em mudanças.

Texto e fotos (V.M. Pinto)

 

Data de introdução: 2022-04-07



















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