1 - Ainda recordo a intervenção do então Primeiro-Ministro, António Guterres, aquando do referendo sobre a regionalização, em 1998, defendendo com sinceridade – não como o Fernando Pessoa: “Quando falo com sinceridade, não sei com que sinceridade falo. Sou variamente outro do que um eu que não sei se existe (se é esses outros). Sinto crenças que não tenho.” –, defendendo com sinceridade, repito, a reforma administrativa que propôs para o nosso País, através da criação de regiões administrativas, com órgãos legitimados pelo voto popular e directo e com competências mais amplas e qualitativamente diferenciada das de que dispunham (e dispõem) as autarquias locais.
Talvez fosse porque as palavras de António Guterres ecoavam nas minhas próprias ideias quanto à forma de ver organizado e desenvolvido o meu País, mas o certo é que a sua afirmação de que, pela primeira vez, um Governo em funções propunha a diminuição dos seus próprios poderes, competências e atribuições, defendendo que a democracia ganhava e se aprofundava quanto mais equilibrada fosse e distribuição das competências pelas várias instâncias territoriais, com voluntária e democraticamente caucionada perda de poder por parte do centro, em benefício das instâncias periféricas, essa afirmação, reitero-o, pareceu-me então o melhor argumento que sustentasse a consagração desse modelo de organização político-administrativa.
Como se sabe, esse referendo foi então – em 1998, há quase 25 anos – objecto de um debate aceso, em que adversários e defensores da reforma administrativa se organizaram de forma transversal à sua orientação político-partidária corrente, partilhando com adversários da véspera o apoio ou a oposição à reforma.
Mais partilhando a oposição do que o apoio, valha a verdade que se diga.
Com efeito, basta lembrar a entente de Marcelo Rebelo de Sousa, então Presidente do PSD, Mário Soares, ex-Presidente da República, a corrente mais jacobina do PS e o Rui Rio de então, juntos pela defesa do “Não”, em contraponto à absoluta solidão de António Guterres – que, todavia, tinha razão.
Menos no mapa, que repartia o território numa pulverização de circunscrições sem massa crítica para impor ao poder central os interesses dos respectivos eleitores e que originou em muitas circunstâncias o voto de rejeição da reforma.
Na verdade, só há autonomia quando a instância mais frágil dispõe de condições para afrontar os interesses da instância mais poderosa e para lhe poder impor as suas próprias propostas.
O voto é uma arma, como se proclamava nos idos de Abril de 1974.
2 – Perdido o referendo, veio a descentralização de competências de várias áreas do Estado Central nas autarquias locais, como substituto, ou placebo, da regionalização verdadeira e própria.
Tinha a vantagem de não depender do requisito referendário instituído para a regionalização pela Constituição, obtendo-se o mesmo efeito de alívio do centro sobrecarregado e de reforço da periferia desguarnecida.
Já vem de longe esta ideia de reforma, aliás argumento utilizado pelos arautos do Portugal Uno para incutir na cidadania a percepção de que os mesmos efeitos da regionalização se obteriam por este seu substituto: a descentralização, através da transferência de competências.
Vem pelo menos desde que Rui Rio era Presidente da Câmara do Porto e António Costa Presidente da Câmara de Lisboa – e, vacinados pelos empecilhos suscitados pelo poder central ao desenvolvimento das comunidades e territórios que governavam, acertaram esta reforma, quando dispusessem de poder para a levar a cabo.
Foi, como se sabe, um compromisso que cumpriram, quando coincidiram António Costa como Primeiro-Ministro e Rui Rio como Presidente do PSD – sendo essa uma das escassas reformas que mereceu o consenso parlamentar de ambos os partidos do Bloco Central e quer valeu a Rui Rio a acusação entre os seus de ser uma muleta do PS.
Vem, pelo menos, desde há seis anos – tantos quantos Costa leva após ter saído da Câmara de Lisboa.
Não tem corrido bem!
O Porto já saiu da Associação Nacional de Municípios, à conta da má condução do processo de descentralização, e outros Municípios, embora não saindo, como Lisboa, não deixam de acompanhar o Porto nas suas reivindicações.
Pela primeira vez, instalou-se a divisão na Associação Nacional de Municípios e os sucessivos recuos e cedências feitas pelo Governo para salvar a reforma só podem ter o significado de que o Porto tinha razão nas suas queixas, como aqui referi na última crónica.
Instalou-se a percepção de que o Governo apenas desiste de competências menores, e quer pagar a sua execução futura pelos Municípios a preço de saldo.
Continua com o poder, mas sem a despesa; ficando os municípios com a despesa, mas sem o poder.
3 – Por outro lado, quando os municípios detêm poder efectivo, conferido por lei, arriscam-se a perdê-lo.
Em caso da construção de novos aeroportos, o município onde tal infraestrutura seria construída dispõe de poder de veto, conferido por lei, sobre a localização proposta, inviabilizando a respectiva construção.
Trata-se de um poder com consistência efectiva, que representa a afirmação do direito de uma comunidade local querer preservar a sua segurança e bem-estar, necessariamente afectados por uma infraestrutura aeroportuária.
Por isso mesmo a querem retirar da cidade de Lisboa.
Tal veto ocorreu num município da Grande Lisboa, a propósito da construção do novo Aeroporto Humberto Delgado.
Qual a solução que o Governo quer adoptar para resolver o imbróglio? Alterar a lei, retirando, à sombra da maioria absoluta, tal poder aos municípios.
Até pode considerar-se que, tratando-se de uma infraestrutura desta dimensão, o interesse público geral deve prevalecer sobre os interesses locais, mesmo que respeitáveis.
Mas o ponto não é esse.
Essa alteração da lei, a ocorrer, e por muito bons que sejam os motivos, causará um dano ao processo de descentralização bem maior do que todas as vantagens que provenham da transferência de competências em curso.
Sinaliza um critério de decisão – de reforço de centro.
Para além da circunstância de, numa democracia adulta, ser impensável um Governo, só porque dispõe de maioria absoluta, alterar uma lei da República para resolver uma contrariedade pontual e individualizada, suscitada pelo legítimo exercício de um direito por parte de um município.
Com efeito, e como já sabíamos de experiências anteriores, as maiorias absolutas são pouco amigas dos direitos dos outros; designadamente quando esses direitos estorvam, como é seu dever, o exercício do poder executivo.
A confusão e a novela que vai no processo de construção do novo Aeroporto de Lisboa bem dispensava esta agravante.
4 – Porquê o título da crónica?
Porque não sabemos se nestes voos andam pássaros a pôr os ovos nos ninhos dos outros.
Não há inqueritos válidos.