EUGÉNIO FONSECA, PRES. CONF. PORTUGUESA DO VOLUNTARIADO

Transferência de competências: um teste à democracia

Tenho acompanhado o zeloso cuidado com que os dirigentes das organizações nacionais e distritais representativos das Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS) estão a demonstrar para assegurarem a transferência de competências, no que diz respeito às IPSS, do poder central para as autarquias. Estou em sintonia com muitas das suas preocupações e expectativas.

Apesar de não ser um regime político de governança perfeito, o modelo democrático é o melhor que se conhece para garantir o cumprimento dos Direitos Humanos. A essência da democracia está em dar a todos, abrangidos por este modo de fazer política, o direito e o dever de participação no progresso das sociedades das quais fazem parte, para que se garanta um desenvolvimento, que sem dispensar o crescimento económico, assegure que a distribuição dos bens existentes seja feita com justiça social. Qualquer diferenciação necessária terá de ser em favor dos mais fragilizados, sejam eles pessoas ou instituições. Toda a diferenciação, em democracia, só se justifica se for, positivamente, direcionada. Relevo a participação como a maior potencialidade de qualquer regime democrático, mas não esqueço a importância de se assegurar que os cidadãos têm a possibilidade de escolherem, livremente, os seus representantes nos diferentes órgãos políticos, no nosso caso, a nível europeu, nacional e local. Os atos eleitorais são fundamentais, mas não se podem esgotar neles as potencialidades que a democracia proporciona. O delegar a representação em concidadãos não liberta ninguém, segundo as suas capacidades, da responsabilidade de colaborar no desenvolvimento das regiões, nos seus diferentes contornos geográficos. A dinamização democrática está, sobretudo, alicerçada em partidos políticos. Eles são fundamentais para se conseguir a democraticidade de ideais, sendo certo que há valores que não podem deixar de ser comuns, sob pena de se porem em causa imperativos que distinguem as democracias das ditaduras. Esses valores são: o respeito inalienável pela dignidade de qualquer ser humano; a vivência responsável da liberdade; a justiça social; a solidariedade; a subsidiariedade e o bem comum. Em suma, o eixo de qualquer regime democrático é a pessoa, sem qualquer tipo de discriminação negativa.

Da zona ocidental da Europa, Portugal e Espanha são os que têm menos anos de vivência democrática. Como não é um regime perfeito (não sei se alguma vez se conseguirá algum que o seja), 48 anos são poucos para corrigir as distorções que, nos aspetos menos perfeitos, ainda persistem. Enuncio alguns, a partir do meu ângulo de análise, respeitando quem possa pensar diferente. São eles: a frequente secundarização dos cidadãos em favor de interesses “financeiristas” e, excessivamente, ideológicos que dão origem a um flagelo nacional antidemocrático que é a corrupção; a confusão entre as dimensões nacionais e públicas; a incapacidade de consensos políticos quando está em causa o respeito por direitos humanos; o distanciamento que se estabelece entre os eleitores e os eleitos; os déficits de participação gerados pela desmotivação originada por procedimentos incoerentes e, por vezes, até dolosos de quem diz fazer da prática política uma missão de nobre cidadania; os fracos incentivos concedidos aos designados órgãos intermédios, entre os quais se incluem as IPSS, numa clara desvalorização de um dos fundamentais princípios democráticos que é, a já referida subsidiariedade.

Propositadamente, partilhei esta reflexão convosco para melhor se compreenderem as potencialidades e riscos da descentralização de competências. A desconcentração do poder central é um avanço na fidelização democrática. Como afirmou Daniel Bell, «qualquer Estado é grande demais para resolver pequenos problemas, e pequeno demais para encontrar soluções adequadas para os grandes». Quer dizer que a corresponsabilidade, nos seus diferentes níveis, é a estratégia mais segura, sendo certo que, quem está mais perto das pessoas melhor conhece os seus anseios.

Relativamente à descentralização política em curso, quanto às IPSS, procurarei não repisar o muito que já têm sido as constatações dos dirigentes da CNIS, (Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade) da UMP (União das Misericórdias Portuguesas) e da UPM (União das Mutualidades Portuguesas), mas, pela dimensão decisiva que têm, referirei algumas.

Ainda é muito nebuloso se os recursos financeiros atribuídos pelo governo central às autarquias serão suficientes para as competências que se querem transferir, assim como é pouco claro o modelo de cooperação que se venha a estabelecer entre as autarquias e as IPSS; é necessário assegurar que as autarquias se comprometem a não fazer o que as IPSS conseguem, como aconteceu na expansão da Rede Pré-Escolar e com as atividades extracurriculares no 1.º ciclo;  estas transferências obrigam a redes de parceria mais coesas em que não haja parceiros de primeira e de segunda, para isso impõe-se que a reformulação dos Conselhos Locais de Freguesia, as Redes Sociais a nível concelhio e interconcelhio esteja pronta antes de se acrescentar mais esta vertente à cooperação com as autarquias; é fundamental que na reformulação requerida fiquem bem definidas a missão reguladora e de acompanhamento das entidades cooperantes para que não se corra o risco, quanto a mim o mais perverso, de se celebrarem acordos conforme as ideologias partidárias ou as simpatias pessoais e institucionais; os mecanismos de transparência de todos os procedimentos devem ser bastante evidentes e que os regulamentos que asseguram a proteção de dados referentes aos cidadãos não obstaculizem esta imperiosa transparência; a proteção social dos cidadãos em situação de pobreza e/ou, socialmente, excluídos não tem de ser assegurada, exclusivamente, pelos serviços sociais das autarquias, mas confiados, como até agora, às IPSS e a outros órgãos intermédios como são as Conferências Vicentinas, as Cáritas Paroquiais, os serviços de ação social de outras confissões religiosas e de coletividades; a conjugação das políticas públicas, não deixarão de existir, sob pena de se estabelecer discricionariedades regionais injustas, que fique bem esclarecida a sua conjugação com as orientações das autarquias em articulação com os seus parceiros…

O povo diz que tudo o que nasce torto, tarde ou nunca se endireita. Reconheço que a descentralização já em curso é um processo que terá avanços e recuos e não um produto já, totalmente, confecionado. Assim, se cresce sadiamente. Mas há “vitaminas” que favorecem este crescimento: humildade, diálogo, cooperação, desburocratização, desfacciosismo, cidadania, transparência.

Quero crer que esta descentralização de competências tonificará a nossa democracia.

 

 

Data de introdução: 2022-09-08



















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