1 - Calhou-me escrever a crónica na semana do S. Martinho e no dia seguinte à informação de que Jerónimo de Sousa ia abandonar o cargo de Secretário-Geral do Partido Comunista Português, ao fim de 18 anos de sucessivos mandatos.
No restrito leque de dirigentes políticos actuais que ainda trazem consigo o privilégio de terem respirado como adultos o ar de Abril de 1974 e de terem embainhado na lapela os cravos desse dia inicial, só ficam Marcelo Rebelo de Sousa e António Guterres.
Todos os outros dirigentes de topo das principais forças políticas que têm ocupado o espaço da representação popular ao longo dos últimos 48 anos foram saindo de cena, por morte, por doença ou por desalento.
(É o caso, entre outros, de Mário Soares, Jorge Sampaio, Francisco Sá Carneiro, Nuno Rodrigues dos Santos, Mota Pinto, Emídio Guerreiro, …)
Ou saíram em benefício da renovação geracional, como sucedeu com Francisco Louçã, ou Carlos Carvalhas.
É agora a vez de Jerónimo de Sousa, por motivos de saúde, ao que foi dito.
Deputado à Assembleia Constituinte – esse escol que corporizava o melhor que o País tinha, após e por contraponto aos longos anos da ditadura -, fez do Parlamento o seu espaço de afirmação pública, até ser chamado a substituir Carlos Carvalhas como Secretário-Geral do PCP.
Foi dele o principal mérito, porque foi dele o principal sacrifício, no processo que levou à criação da Geringonça como solução de Governo, trazendo para o que então se chamava o arco da governação, quer o PCP, quer o Bloco de Esquerda.
O tempo passa depressa e os factos esquecem com igual velocidade; mas, tendo em conta a realidade política de hoje, em que somos governados mais uma vez por uma maioria absoluta, como não lembrar esse tempo de conciliação e concertação de posições, que nos permitiu ter ao mesmo tempo as célebres “contas certas” e alguma reversão na legislação laboral, acompanhada de uma progressão do salário mínimo que nos permitisse uma aproximação ao patamar europeu?
E que permitiu que, quer o PCP, quer o Bloco de Esquerda, tivessem mantido uma aproximação ao exercício do poder político, deslocando para o campo das soluções possíveis e moderadas muita da retórica radical que constituía anteriormente o núcleo central do seu discurso.
Essa moderação, que o aroma do poder ensina e suscita, tem sido apontada, aliás, por muitos comentadores, como uma das causas por que em Portugal os movimentos populistas do lado esquerdo do espectro têm tido visível insucesso, afastando-nos de perturbações e perversões das boas regras democráticas que têm ocorrido em vários países do chamado Ocidente.
A esquerda parlamentar acomodou as movimentações sociais.
2 – É um injusto momento este, do afastamento de Jerónimo de Sousa, que fica assim associado a um período de reduzida representação parlamentar, na sequência de um enfraquecimento gradual da expressão eleitoral do PCP.
Injustiça reforçada por também coincidir com um tempo em que o PCP tem tomado posições controversas e em contracorrente, a propósito da invasão da Ucrânia pela Rússia, causando geral estranheza a repúdio.
Mesmo aqueles, como é o meu caso, que têm um grande respeito pela história do PCP, pela resistência com que enfrentaram a ditadura e pelo arreigado conhecimento das necessidades do povo, não conseguem compreender esta fixação contraditória por um outro tempo da História, que já não volta.
É certo que o PCP sempre foi mais certeiro na análise da situação do nosso País do que na avaliação da situação internacional. Mesmo no tempo da União Soviética.
Já várias vezes tive ocasião, nestas crónicas mensais do “Solidariedade”, de chamar a atenção para a justeza de algumas análises da situação do nosso País por parte do PCP, anotando o conhecimento efectivo do Portugal real que tais análises evidenciavam, independentemente de se votar ou não nesse Partido.
Ironicamente, a crise actual da energia e do comércio alimentar, em grande medida resultado da invasão da Ucrânia, veio comprovar o acerto do diagnóstico que desde há décadas o PCP tem apresentado sobre os efeitos perniciosos do desmantelamento da estrutura produtiva, designadamente no campo industrial, agrícola e das pescas, que marcou o processo de integração de Portugal na então CEE, no tempo de cavaquismo – e que agora se procura, a muito maiores custos, reverter.
O mesmo se diga, a propósito da Pandemia, sobre a dependência, quer em manufacturas, como materiais de protecção, quer em alimentos, com que o Ocidente se deixou aliciar pelos preços praticados pela China – e que ajudou ao propósito de destruição do sistema produtivo, também em Portugal.
Lembro o bordão retórico com que Álvaro Cunhal pontuava as suas intervenções, enfatizando sempre que as suas propostas tinham em vista defender os interesses “do nosso povo e da nossa Pátria” – reabilitando com a sua autoridade de resistente um conceito, o de Pátria, que bem precisava de ser reinventado, depois dos maus tratos que recebera da ditadura.
“Independência nacional!” – era, e bem, um dos slogans.
Mesmo em seu tempo, sempre me custou entender como o PCP conseguia conciliar essa defesa efectiva da independência nacional - que por vezes até parecia uma retórica conservadora -, com a sujeição estratégica aos interesses da União Soviética.
Mas, com o colapso da URSS, tal compatibilização deixou de ser uma questão – pensava eu, e muitos outros.
A Rússia de hoje nada tem que ver e é uma mera caricatura da União Soviética, que foi a utopia que inspirou o PCP ao longo de quase toda a sua longa existência de 100 anos.
Na verdade, o que tem que ver a Rússia de hoje, assente numa oligarquia que usurpou os bens que pertenciam ao povo, num processo de acumulação primitiva de capital provavelmente o mais rápido da História, com a utopia que, para muitos, e certamente para o PCP, a União Soviética representava para os trabalhadores?
3 - Há outro aspecto que é justo recordar, a propósito deste abandono de cena de Jerónimo de Sousa – é aquilo a que os revolucionários russos de 1917 chamavam a “modéstia bolchevique”, que se lhe aplica como uma luva.
Um dos fenómenos que tem pontuado a actualidade é a existência de um número inusitado de processos de inquérito criminal a políticos em funções, muitos aventando que é um fenómeno fatal como o destino, na vigência de maiorias absolutas – como é o caso presente.
São de diversa natureza e gravidade – e provavelmente grande parte deles não possuem densidade criminal, como vem sendo dito a propósito da necessidade de revisão da lei das incompatibilidades; a começar pelo Presidente da República.
São diversos os casos e as responsabilidades – mas há sempre um chão comum.
Trata-se sempre de contratos – de empreitada, de aquisição de bens ou serviços … -, em que um dos contratantes, o que paga, é uma entidade pública; e quem é contratado, e recebe o pagamento do preço, é uma empresa, que pertence, ou pertenceu, no todo ou em parte, a um ministro, a um secretário de estado, a um autarca, ou a um familiar de qualquer uma dessa tribos– cônjuge, pai ou mãe – mais pai que mãe - ou filhos, irmãos, sobrinhos ou primos …
Não me interessa aqui se um ministro pode ou não ser dono de uma empresa, ou deter partes do capital dessa empresa; ou se o empresário marido de uma ministra pode ou não contratar com o Estado e lucrar – mesmo legitimamente – com o negócio.
O meu ponto é que quase não há ministro, ou titular de outro cargo, que não seja, ou tenha sido, empresário – ou seja de famílias habituadas à cultura empresarial.
Há quase como que uma osmose – como diria o Herman – entre a tribo dos políticos e a turba dos empresários.
A política vai às empresas, ou ao mundo e à cultura das empresas, recrutar o seu pessoal; ou esse pessoal político, a partir do estrado em que se encontra, cria empresas e proporciona-lhes oportunidade de negócios, para responder a necessidades, efectivas ou inventadas, que lhes compete prover.
Pode ser tudo legal.
E pode até parecer mal …
Mas, como António Costa tem dito, enquanto a Justiça não condenar, ele tãopouco condena – mesmo que seja daqui por 20 anos.
Ora aqui está uma coisa –a responsabilização política pelo descrédito das Instituições – em que Jerónimo de Sousa podia continuar a dar lições à generalidade da classe política.
Henrique Rodrigues (Presidente do Centro Social de Ermesinde)
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