HENRIQUE RODRIGUES, PRES. CENTRO SOCIAL DE ERMESINDE

Sobre as tangerinas

1 - Vou escrever sobre o Natal.
É esta a última crónica deste ano atípico de 2022 - e é Dezembro.
Gostamos em regra menos dos meses de Inverno do que os das restantes estações – salvo Dezembro, que logo associamos ao Natal.
“Porque esta noite chama-se Dezembro,/porque sofremos, porque temos frio.” - como escreveu David Mourão Ferreira.
E, mesmo que andemos pelas ruas arrepiados de frio, é frio que queremos nesta quadra, para melhor nos aconchegarmos ao lume – embora o calor do lume nos aqueça cada vez menos, à medida que os anos vão passando.
Frio no corpo; calor na alma.
Mas há calor na alma?
Haverá calor, por exemplo, na Ucrânia, sem luz e sem aquecimento?
Em 1968, ano da Primavera de Praga, esmagada pela invasão da então União Soviética, e com os Estados Unidos enrodilhados no Vietname, escrevia David Mourão-Ferreira, num dos seus poemas do Cancioneiro do Natal: “Mas penso no que seja a noite de hoje em Praga/Vais a dizer Jesus e dizes Vietname/É assim que o Natal nos dilacera a carne/É assim que o Natal nos parece um alfange.”
Costuma aproveitar-se esta época do ano para fazer balanços, para resumir nos seus traços essenciais o que foi o ano que está a findar.
Mas este ano o resumo é fácil de fazer, na medida em que a invasão da Ucrânia ocupa todo o espaço de evocação do que se passou de mais relevante ao longo de 2022.
Não só pelo que se passa nessa outra ponta da Europa; mas também pelos efeitos que o que aí se passa produziu nas nossas vidas.
Tem sido, na verdade, o fulcro do que se passa nesta parte do mundo onde nascemos e vivemos, desacostumada de guerras desde há quase 80 anos, e que virou do avesso a doce ilusão em que vivíamos de que tudo era seguro e tudo era certo e previsível.
Afinal, como sempre foi, o mundo muda – e, mudando, muda-nos com ele.

2 – Mas não é só vinda de fora que a mudança nos muda.
Leio hoje no jornal que “Portugueses enchem hotéis para consoada”.
Nunca na simbologia do Natal pensei noutro cenário que não a reunião, à volta da mesa ou ao lume da lareira, de cada família, mais restrita ou mais alargada.
Cada um peregrinando por dentro de si próprio, mas logo regressado ao vagar do lume e da conversa.
“Como quem na corrida entrega o testemunho,/passo agora o Natal para as mãos dos meus filhos.” – ainda David Mourão-Ferreira. 
Os preparativos prenunciam e fazem parte da festa.
Voltando a David Mourão-Ferreira, “a festa começava/entre odor a resina/e gosto a noz moscada/e vozes femininas.”
(Hoje, de acordo com a novilíngua, onde está “femininas” diríamos “neutras” – mas não rimava com “resinas” …)
Nem só os vivos comparecem à reunião familiar.
Volto a David-Mourão-Ferreira: “Juntam-se os mortos hoje à noite/para fingir que são felizes./Sopram a neve. Acendem velas./Rompem de súbito a cantar:/ Dizem que estão à nossa espera./Sabem que havemos de voltar.”

3 – Este ano, e se não for neste, será no próximo, e nos seguintes, muitas mais famílias não terão casa onde passar a consoada.
A “prenda” que tiveram no sapatinho foi o aumento das prestações do empréstimo ao banco para a compra da casa em cerca de 40%, em virtude do aumento das taxas de juro decididas pela banca.
Muita gente não vai conseguir renegociar as condições de amortização do empréstimo e vai assistir, impotente, à execução das hipotecas que os bancos credores irão promover.
No entanto, se há coisa que me espante é como, neste contexto de crise mundial e de inflação galopante, quer pela ruptura dos circuitos de abastecimento, quer pela especulação com os preços dos combustíveis, os bancos apresentam lucros excepcionais, superiores aos anos “normais”, parecendo até que esses resultados “engordam” com a pobreza os outros.
E o certo é que engordam …
O Governo já anunciou algumas medidas que pretende impor aos bancos para facilitar aos beneficiários do crédito à habitação a renegociação dos empréstimos; mas os bancos já responderam a esse anúncio, ameaçando que quem quisesse renegociar de acordo com as medidas anunciadas iria para a “lista negra” dos bancos e não conseguiria mais empréstimos.
A ver vamos se o Governo consegue ser forte com os fortes – já que ser forte com os fracos não é virtude.
Vários projectos de revisão constitucional apresentados na Assembleia da República incidem no artº 65º, relativo ao direito à habitação, apontando-se para o regresso à participação das cooperativas de habitação, e para a municipalização dos solos, como solução para a oferta de habitação própria ou em mercado regulado de arrendamento, de forma a obter habitação a custos mais compatíveis com quem não tem acesso a “vistos gold” e a fazer regressar os jovens e a classe média ao centro das cidades.
Os mais jovens não têm memória do papel essencial que tiveram as cooperativas de habitação nas décadas a seguir ao 25 de Abril, em cooperação com os municípios, na oferta de habitação a preços controlados.
Mas o desenvolvimento das pequenas cidades – e não só das pequenas - muito deve a essa acção.
(O caso exemplar que melhor conheço é o de Matosinhos, com Narciso Miranda e Guilherme Vilaverde – aliás, dirigentes de instituições particulares de solidariedade social -, onde a acção das cooperativas de habitação muito contribuiu para a pujança e qualidade de vida que caracteriza o desenvolvimento do concelho nas últimas décadas.)
No tempo da Geringonça, esteve em estudo a medida legislativa de impedir a penhora, em processo executivo, da casa de morada de família.
Estou de acordo!
Então – e regressando, para acabar a crónica como a comecei, a David Mourão-Ferreira, “talvez seja Natal e não Dezembro/talvez universal a consoada.”  

4 - Este ano, as tangerinas estão atrasadas.
Mas o ritual da sua colheita e a evocação do seu perfume faz parte da nostalgia do Natal.

 

 

Data de introdução: 2022-12-13



















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