Durante algum tempo alimentei a ideia de que os banqueiros centrais tinham o melhor emprego do mundo. Se excluirmos os cargos políticos de topo, os banqueiros centrais são as pessoas com mais poder nas democracias modernas.
Contudo, ao contrário dos políticos, para quem o poder anda geralmente associado ao desprestígio pessoal quando não desprezo pelo grande público, os banqueiros centrais pareciam viver no olimpo - função prestigiada, bem remunerada, só acessível a pessoas com um imaculado reconhecimento académico e/ou profissional e, finalmente, durante muito tempo nem sequer foi um trabalho particularmente exigente.
Se olharmos para os quase trinta anos que vão do controlo do surto inflacionista nos anos 80 do século XX até à crise financeira de 2008/2009 e respetivas sequelas, a inflação andou bem-comportada, quase sempre próxima do alvo e o pouco que houve para resolver não implicou nem esforços titânicos nem decisões difíceis ou particularmente impopulares.
Rica vida…
Mas acabou-se! O que aí vem pode ser um cenário de horror para os banqueiros centrais.
Desde logo, em meados de 2023, podemos enfrentar uma tensão séria entre poder político e bancos centrais.
Tudo indica que a inflação atingiu o pico e terá começado o ciclo descendente. É provável que a tendência descendente se acentue em 2023 à medida em que o carácter restritivo da política monetária for fazendo o seu caminho e, sobretudo, quando os efeitos de base ficarem mais evidentes.
No segundo trimestre de 2023 estaremos a comparar os preços dessa altura com os preços que vigoravam um ano antes, ou seja, preços que já estavam influenciados pela subida vertiginosa da energia depois da invasão da Ucrânia. À medida em que a energia deixar de contribuir para o índice geral, este vai naturalmente baixar.
Podemos ter uma situação em que o índice geral da inflação está a cair, mas a inflação nuclear (excluindo elementos voláteis, nomeadamente energia e comida) resiste acima do nível considerado aceitável.
Uma análise fria dos dados e o cumprimento dos mandatos a que estão vinculados pode exigir aos bancos centrais a continuação de taxas de juro elevadas, putativamente em território restritivo e correr mesmo o risco de uma recessão económica.
Mas isso pode ser politicamente invendável.
Como explicar aos políticos e ao público em geral (em particular aos que têm dívida pela compra de habitação) que, estando a inflação a cair, mês após mês, continue a ser necessário subir as taxas de juro que é como quem diz, fazer subir as prestações das casas?
Não se duvide que, algures no tempo, alguém haverá de perguntar: mas quem são afinal aqueles cavalheiros, que, aliás, ninguém elegeu, para nos infernizar as vidas?
Os populistas de todos os matrizes, em particular os de extrema direita, já estão a afiar as facas. Os banqueiros centrais (em boa parte por culpa própria) estão mesmo a jeito para mais uma vaga de ódio às elites meritocráticas.
Não faço ideia de como se vai resolver esta tensão nem qual o novo equilíbrio que emergirá desta crise, mas temo bem que, quando a poeira assentar, a credibilidade dos bancos centrais e dos seus dirigentes tenha levado mais uma valente pancada.
Até agora a vida tem sido boa para os banqueiros centrais também numa outra perspetiva. Têm feito resultados fantásticos à custa os ganhos nos títulos que foram comprando para apoiar a economia. Para os governos também tem sido um maná na medida em que os bancos centrais têm pago dividendos chorudos aos orçamentos do estado.
O orçamento do estado português tem recebido mais de 400 milhões de euros por ano de dividendos do banco de Portugal.
O essencial dos resultados dos bancos centrais tem sido feito com os juros dos títulos que foram comprados no ciclo de expansão do balanço. As taxas negativas sobre os depósitos dos bancos comerciais também ajudaram durante algum tempo – os bancos pagavam para ter dinheiro parqueado nos bancos centrais.
Por outro lado, a posição de capital dos bancos centrais estava forte porque os títulos que foram comprados para fins de política monetária valorizaram e engordaram as reservas de justo valor.
Mas a roda da fortuna está a girar.
Os bancos centrais já estão a pagar forte sobre os depósitos dos bancos comerciais – as taxas voltaram a território positivo. A quantidade de títulos que gera juros vai encolher à medida que o balanço for emagrecendo. Pior ainda, a posição de capital vai deteriorar porque os títulos comprados para fins de política monetária vão perder valor com a subida das taxas de juro.
Não por acaso a previsão de dividendos do banco de Portugal para 2023 é sensivelmente metade do que tem sido nos últimos anos.
Para a frente as coisas só podem piorar. Alguns bancos centrais vão reconhecer perdas significativas.
Claro que os bancos centrais, em teoria, não podem falir. Mesmo que tenham posições de capital negativas (dívidas superiores aos seus haveres) podem sempre imprimir dinheiro para pagar as dívidas.
A “falência” dos bancos centrais ocorre quando as pessoas perdem a confiança na moeda e se desencadeia um processo de hiperinflação.
Ao contrário de algumas previsões catastrofistas que circulam por aí, não acredito que a deterioração dos balanços dos bancos centrais venha a provocar uma qualquer crise de liquidez ou perda de confiança na moeda. Não creio que no mundo de capitalismo avançado se corra o risco de descontrolo do processo inflacionário ao ponto de as instituições centrais do sistema “falirem”.
O problema que podemos enfrentar (e não é pequeno!) é político, é a perda de credibilidade nos bancos centrais, nos seus dirigentes e, no limite, começar a ser posto em causa o seu estatuto independente.
O que aí vem vai reacender o fogo dos populismos que, aliás, nalguns casos já se manifestam à luz do dia.
Ainda a procissão não saiu do adro, a verdadeira dor das políticas monetárias restritivas ainda não se faz sentir e, em Itália, onde está no poder a extrema direita, vários ministros vêm regularmente a público classificar as ações do BCE como “estúpidas”.
Não tarda, teremos o nosso André Ventura a proclamar que o BCE, o banco de Portugal e o Dr. Centeno são “uma vergonha”.
O ano de 2023 será terrível para os banqueiros centrais. Claro que grandes tormentas convocam grandes capitães. Mas será que os temos ao leme? Infelizmente não acredito!
Vai doer…
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