1 – Por estes dias, o Ministro das Finanças, Fernando Medina, veio dar-nos a boa notícia de que o Orçamento de Estado para 2024, actualmente em preparação, abandonará a prática das cativações.
Essa decisão marca uma ruptura, com a prática seguida desde há vários anos, prática que se tem traduzido no aprisionamento no Ministério das Finanças de uma determinada percentagem do Orçamento de cada um dos departamentos governamentais pelos quais gira a despesa pública, e que, não obstante se encontrar afecta a cada um dos Ministérios, não pode ser gasta sem autorização do Ministério das Finanças. – que, em aproximadamente metade dos casos, não a tem dado.
(Segundo o “Púbico” de hoje, 6 de Agosto, a partir de dados da Direcção-Geral do Orçamento, o total de cativações em 2022 que não foi gasto foi de 444 milhões de euros; e o total das cativações estabelecido para 2023 é de 1.242 milhões de euros.)
É o que já Salazar designava por “ditadura do Ministério das Finanças” – e consiste na ideia de que aos Ministérios foge a mão para a despesa e de que, para obviar a essa pulsão gastadora, é mister uma mão firme que assegure uma poupança forçada dos recursos públicos.
(Ao fim e ao cabo, mais uma manifestação do centralismo que é um dos nossos males endémicos.)
Foi também graças às cativações que Mário Centeno, enquanto Ministro das Fianças, seguido de João Leão, no seu curto mandato, lograram apresentar, na frente externa, e designadamente perante as autoridades europeias, a boa performance macroeconómica, que permitiu ao País reduzir substancialmente a dívida externa e, em consequência, reduzir a factura dos juros associados a essa dívida e melhorar o rating.
O que não foi gasto, foi entregue para amortização da dívida – deixando por satisfazer as necessidades para cuja provisão o Orçamento deixara prevista a verba global. Sem cativações.
Na verdade, o mesmo dinheiro não dá para pagar, ao mesmo tempo, duas coisas diferentes: a dívida e as despesas orçamentadas.
Como já aqui tive ocasião de referir, depois do estado de insolvência em que nos deixou o Governo de José Sócrates, que teve de chamar a intervenção da troika e que implicou um longo período de austeridade, não havia alternativa senão poupar à força.
O que distinguiu a poupança à força de Passos Coelho da de António Costa foi mais ao nível do discurso do que das políticas: enquanto Vítor Gaspar nos anunciava um “brutal aumento de impostos”, sugerindo que a culpa era nossa, dos portugueses em geral, que tínhamos vivido acima das nossas possibilidades, Mário Centeno actuou com luvas de veludo, de mansinho: quase não se dando conta, mas cortando na despesa com idêntico vigor.
É por isso que há muita gente que defende que com o primeiro Governo de António Costa não houve verdadeiramente um virar de página de austeridade.
A austeridade manteve-se; o que mudou foi o estilo – para melhor, convenhamos.
2 – “Cativar” é uma palavra polissémica: tanto pode significar “aprisionar” – como é o caso das cativações orçamentais -, como pode significar “encantar”.
As cativações de Centeno obedeceram a esse duplo sentido: foram o aprisionamento de dotações orçamentais – e “cativações”, por essa razão; e, ao mesmo tempo (e para manter o registo camoniano …) fomos tocados pelo encantamento, “naquele engano d’alma, ledo e cego,/ que a fortuna não deixa durar muito”.
É mais ou menos consensual que, assim como as águas do rio não passam duas vezes debaixo da mesma ponte, as verbas que serviram para reduzir a dívida não servem depois para pagar despesa.
O que já suscita divergências é saber se tal redução da dívida, - ou, para utilizar a fórmula de António Costa, Mário Centeno e Fernando Medina, a política das “contas certas” – tinha ou não alternativa.
Como já aqui referi há algum tempo, prefiro que o País honre os seus compromissos e não seja caloteiro.
Mas, como em tudo, é uma questão de ritmo e de medida.
Ora, parece também consensual a avaliação de que, relativamente a algumas cativações, melhor fora que o não tivessem sido.
A poupança forçada – e não só no que respeita às cativações – foi porventura mais extensa do que o que devia.
A crise de funcionamento de alguns serviços públicos provém, em grande medida, da escassez de investimento por parte do Estado nos anos mais recentes.
Para só falar dos sectores a que recentemente se referiu o Presidente da República, numa advertência ao Governo, a Saúde e a Educação atravessam tempos difíceis.
E, para os resolver, é mister gastar dinheiro.
Os investimentos do PRR, designadamente no reforço das Unidades de Saúde e no alargamento do âmbito da Medicina Familiar, tardam em ver a luz do dia – e cada vez mais retardam consultas e cirurgias para quem as aguarda há meses ou anos.
E a luta dos professores ameaça o desenvolvimento do próximo ano lectivo, dando sequência a dois anos de aprendizagens mais precárias, devidas, quer a essa luta, quer à perturbação dos ritmos próprios do meio escolar, provocado pela pandemia.
3 – Fernando Medina só acaba com as cativações porque não precisa delas para as “contas certas”.
A inflação veio dar uma folga ao Governo de que ele não estava à espera.
O volume da receita fiscal aumentou como no tempo da troika, devido à valorização dos salários e ao aumento do IVA sobe os gastos com alimentação e energia.
Prevê-se saldo positivo na execução do Orçamento para 2023 - e o mesmo para 2024.
Esse saldo terá o papel estabilizador que era assegurado pelas cativações passadas.
Dará para continuar a amortização da dívida e para se aproximar da satisfação das necessidades essenciais, correspondentes aos direitos sociais universais – que têm ficado para trás.
O Governo terá é de tentear a dose para os vários males.
Como se referiu, o Presidente da República elegeu a Saúde e a Educação como credores da atenção do Governo, no tempo imediato.
Mas também a Protecção Social constitui um direito universal: “a cada um segundo as suas necessidades”.
Acresce que a Administração não tem apenas compromissos externos.
Também celebra contratos com os cidadãos e as suas organizações.
Estes compromissos na frente interna são tão sagrados como os outros, perante os credores externos.
Os cidadãos também são credores.
Com a folga orçamental para 2023 e 2024 não haverá pretexto para deixar de cumprir finalmente o Compromisso do Pacto de Cooperação para a Solidariedade Social, assinado em 2021, da comparticipação pública equitativa nas despesas de funcionamento das respostas sociais.
O Pacto não pode ser só para “cativar” pela linguagem, “naquele engano d’alma”.
Nem vale “cativar” para guardar no cofre!
Henrique Rodrigues – Presidente do Centro Social de Ermesinde
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