1 – Foram há dias dadas por concluídas as obras de recuperação do velho Liceu de Alexandre Herculano, no Porto, restituindo aquelas centenárias instalações de palacete à sua finalidade educativa da juventude adolescente.
Na circunstância, o momento dessa devolução do Liceu (chama-se agora Escola Secundária) ao usufruto da comunidade educativa mereceu a presença do Primeiro-Ministro, que teve direito a mais uma manifestação dos professores, em defesa da escola pública - embora a agenda reivindicativa verse mais sobre o estatuto remuneratório do que sobre os programas e as aprendizagens.
Foi o Liceu onde estudei, do 1º ao 7º ano – o que corresponde, na estrutura do ensino actual, aos 2º e 3º ciclos do ensino básico e aos 10º e 11º anos do ensino secundário.
Muito do que sou hoje é devedor desses sete anos que passei nas instalações centenárias do Liceu de Alexandre Herculano: até este papel de escrevedor de crónicas na imprensa foi inaugurado nas páginas do “Prelúdio” – o jornal do Liceu que conheceu os meus primeiros textos publicados.
E ainda hoje, passados mais de 50 anos sobre a data em que terminei o liceu, o Alexandre Herculano constitui o espaço onde pontualmente exerço um dos meus principais direitos.
É aí que funciona a minha assembleia de voto, dever que cumpro religiosamente, lembrado do tempo em que esse direito nos estava vedado.
O Liceu fica situado numa das pontas da Avenida Camilo, topónimo em homenagem ao prolífico escritor portuense, Camilo Castelo Branco, cujo busto ornamenta o início da Avenida, junto ao Campo 24 de Agosto.
O busto já lá está pelo menos desde 1962, ano que comecei o liceu.
Não sei como está hoje; mas, no tempo em que o frequentei, o liceu tinha uma biblioteca magnífica, lembrando aquelas bibliotecas que aparecem nos filmes ingleses, em casas da aristocracia ou nos clubes.
Era então responsável pela biblioteca o Dr. Cruz Malpique, formado em Letras e em Direito, bibliófilo, escritor e professos de Português da juventude inquieta.
Ao que lembro, encontravam-se afixados no salão da biblioteca alguns letreiros com escritos alusivos à solenidade do lugar e que procuravam inculcar comportamentos adequados dos alunos leitores: aforismos, ditados…
Talvez induzido pela toponímia associada ao Liceu – Avenida Camilo -, recordo uns dizeres, que creio terem sido da autoria do próprio Dr. Cruz Malpique, que eram mais ou menos do seguinte teor: “Não escrevas nas margens dos livros: a não ser que sejas um Camilo; mas nota bem, um Camilo; não um camelo…”
Creio que esta evocação é ajustada a este mês em que escrevo, muito marcado por cenas à volta de escritores e literatura – desde a polémica sobre a estátua de Camilo, colocada há 11 anos junto à Cadeia da Relação, onde esteve preso e que o Presidente da Câmara do Porto quis e não quis remover do local onde se encontrava “posta em sossego”, até à trasladação de Eça de Queirós para o Panteão; e, para terminar, à tentação, que já se vai ensaiando entre nós, de reescrever segundo a ditadura woke os livros que compõem o nosso “corpus” literário, começando por corrigir desde já os desvios discriminatórios das falas do João da Ega, em “Os Maias”, de Eça de Queirós.
Segundo a lição do Dr. Cruz Malpique, só se pode reescrever um livro se o revisor for o Camilo.
2 – Já não sei se foi no exame final de Português do 7º ano, se foi em algum exercício escrito de avaliação da mesma disciplina durante o ano lectivo, mas o que recordo é de ter tido que imaginar e elaborar os termos de um debate entre Camilo Castelo Branco e Eça de Queirós – um a defender o naturalismo romântico, outro em defesa do realismo.
Também não recordo com nitidez quem ganhou o debate. Mas creio que foi Eça de Queirós – na medida em que terá sido o critério do gosto a determinar o vencedor, e então as minhas preferências iam para Eça de Queirós, de quem tinha lido de enfiada todos os romances, numas férias, em detrimento dos romances de Camilo, de quem só lera “A Corja” e “Eusébio Macário”, que faziam parte do programa.
O pobre do Eça também se viu posto em bolandas pelo ar do tempo.
Mas foi pior do que com Camilo: com este, apena se tratava de uma efígie; entre muitas, como a da Avenida Camilo, junto ao Campo 24 de Agosto; com Eça, trata-se dos próprios ossos.
Não ponho em causa, do ponto de vista jurídico, a decisão do Supremo Tribunal Administrativo, de acolher a pretensão do Parlamento, de transladar as ossadas de Eça de Queirós, do cemitério de Santa Cruz do Douro, em Baião, na província, para o Panteão de Santa Engrácia, em Lisboa, a capital.
O que me suscita reservas é a decisão política da Assembleia da República.
Tenho lido comentários de especialistas queirosianos, mais aconchegados ao poder, desmerecer os créditos do cemitério de Santa Cruz do Douro, invocando critérios biográficos: que Eça de Queirós só fora duas vezes a Santa Cruz do Douro, pelo que não seria o apelo telúrico a justificar a manutenção das ossadas em Baião; e ainda que os romances de Eça de Queirós cuja acção se passava predominantemente no Douro – “A Ilustre Casa de Ramires” e “A Cidade e as Serras” – constituíam obras menores, com a agravante do se tratar de obras que haviam sido apropriadas pelo Regime de Salazar para o contraponto entre as virtudes da vida rural e os vícios da vida urbana.
(Vi isto escrito.)
Custa-me ver especialistas em Literatura acolherem-se à sombra do biografismo para explicar o que não tem acolhimento no exame dos textos – que são as verdadeiras fontes da análise.
Pode ser que Eça de Queirós tenha vindo apenas duas vezes a Santa Cruz do Douro, à sua imaginada Tormes.
Mas não é por isso que os seus dois livros referidos deixam de remeter profusamente para referência geográficas ligadas a Baião – e a Resende ou Cinfães, da outra margem do Rio Douro, em frente a Baião.
Ramires é uma freguesia de Cinfães, sendo a Casa dos Mendes Ramires, segundo a tradição, a Torre da Lagariça, em S. Cipriano, Resende – a cuja Casa, a dos Condes de Resende pertencia a mulher de Eça de Queirós.
E o André Cavaleiro, amigo-inimigo de Gonçalo Mendes Ramires, era governador civil de Oliveira – que remete para Oliveira do Douro, freguesia ribeirinha do concelho de Cinfães, pegada ao concelho de Resende e fronteira a Tormes.
E mesmo o mais cosmopolita romance de Eça, “Os Maias”, não esquece que é na província, no Douro, o lugar de refúgio dos Maias, para retemperar o corpo a alma das malfeitorias da capital.
Santa Olávia, onde Afonso da Maia se refugiou durante a Regeneração, e onde Carlos da Maia foi criado na juventude – e cujas virtudes Eça contrapõe aos desvios da corte lisboeta – Santa Olávia fica em Resende.
No “Público” de hoje, 1 de Outubro, um cronista ocasional, Paulo Reis Mourão, escreve que “…a trasladação de Eça… é mais uma evidência de um fluxo da periferia para o centro. Portanto, o centralismo ainda vinga em Lisboa.”
Também me parece!
Henrique Rodrigues - Presidente do Centro Social de Ermesinde
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