Neste ano vamos a eleições pelo menos duas vezes (três para os açorianos), somos chamados a renovar o nosso laço político com a comunidade, escolhendo democraticamente quem nos representa.
A democracia é simultaneamente uma ideia velha, experimentada em diferentes civilizações e uma realidade nova, ocidental, embora alargando-se progressivamente a diferentes partes do mundo. Abraham Lincoln talvez seja o autor da sua definição mais concisa e clara, ao falar de “governo do povo, pelo povo e para o povo”. Fê-lo em Gettysburg, em 1863, quando homenageava os soldados falecidos na mais sangrenta batalha da Guerra Civil americana, aí travada, alguns meses depois de as tropas unionistas nela terem derrotado os confederados, sublinhando que a democracia é edificada contra os perigos que enfrenta.
A democracia é uma forma de deliberação pacífica sobre o rumo das sociedades, assente no reconhecimento de clivagens institucionalizadas sob a forma de forças políticas (partidos), que competem pela escolha popular, num contexto de garantia da liberdade de expressão e de opinião, resultando na rotação no poder entre os partidos com mais apoio em cada momento. Implica solidariamente confiar o poder às maiorias e a pedir a estas a garantia de respeito pelas minorias.
A compatibilização que no século XIX parecia impossível entre economias de mercado e garantias de direitos civis, políticos e económicos, sociais e culturais, foi conseguida pela democracia, com apoio popular massivo, na segunda metade do século XX, originando sociedades abertas e historicamente pouco desiguais.
A marcha democrática parecia imparável no fim desse século. Entretanto, o caminho inverteu-se. A China, depois de Tiananmen, manteve-se uma ditadura de partido único. Na Asia, no Médio Oriente, na Rússia, na América Latina, afirmaram-se sistemas formalmente pluripartidários, mas de facto autoritários, sem competição partidária justa, sem liberdade de expressão e sem separação de poderes. Nos EUA, nas Filipinas, no Brasil houve vitórias democráticas de forças populistas. E mesmo na União Europeia, a Hungria e a Polónia tiveram desenvolvimentos políticos preocupantes.
Portugal tem uma Constituição que nos assegura um Estado social e democrático de direito. A revolução parecia ter-nos imunizado contra pulsões autoritárias e a vivência em ditadura ter-nos deixado coletivamente marcas que nos protegeriam de novos ventos autoritários, iliberais e antidemocráticos. Mas as tensões que atravessam o mundo, tocam-nos também.
Uma das razões para o apoio popular à democracia foi a crença em que sob este regime seria maior a proteção dos mais frágeis e mais sólidas as garantias de distribuição justa dos frutos do progresso. Contudo, muitos países, Portugal incluído, atravessaram décadas de estagnação económica e enveredaram por prioridades nas políticas públicas que sacrificaram serviços e direitos sociais às necessidades de consolidação orçamental.
A convergência das forças políticas dominantes, à direita e à esquerda, em torno de medidas que muitos sentem e vivem objetivamente como prejudiciais, provoca erosão do apoio que recebe. Afinal, como dizia T. H. Marshall nos anos 50 do século passado, a democracia estrutura-se em torno de quatro princípios – solidariedade, cidadania, direitos e igualdade – que limitam e se contrapõem a outros quatro princípios do capitalismo – escassez, mercado, propriedade e desigualdade. Se a política falha essa missão de contenção do mercado, gera necessariamente descontentamento que se canalizará contra ela.
Acresce que a polarização política se aprofundou. Não pelo confronto saudável de projetos e visões, mas pelo recurso crescente às tentativas de desqualificação do adversário político. Os melhores exemplos deste fenómeno são, talvez, Trump e Biden (e antes Hillary Clinton) ou Bolsonaro e Lula. No entanto, um pouco por toda a parte, e Portugal não é exceção, surgem tais tentativas.
A separação de poderes é frequentemente ameaçada quer pelas tentativas de controlo político do poder judicial quer, inversamente, pelo poder judicial exercido como instrumento de luta política.
A polarização excessiva é agravada por alterações profundas no funcionamento do espaço público. A crise do jornalismo aumenta o ruído, a espetacularidade negativa e a dificuldade em criar um ambiente propício ao debate de propostas e projetos. Os novos media, municiados por algoritmos que selecionam o que mostram a cada um em função das preferências anteriores, radicalizam e agravam a vivência em casulos. As técnicas de microreferenciação permitem fazer chegar mensagens específicas a segmentos criteriosamente selecionados. E a desinformação procura influenciar processos eleitorais manipulando as pessoas.
As nossas sociedades estão também a mudar por diversas razões demográficas e económicas. As economias avançadas estão hoje necessitadas de atrair trabalhadores. E há zonas do mundo onde essa força de trabalho existe e sonha com uma oportunidade. Consequentemente as nossas sociedades tornam-se multiculturais, multiétnicas e multirreligiosas. E enfrentam o desafio de integrar novas comunidades. Beneficiando do trabalho dos recém-chegados, temos o dever de lhes encontrar um lugar justo na sociedade, respeitar as suas crenças religiosas e lhes disponibilizar serviços acessíveis, na habitação, na educação e noutros domínios sociais. Todos precisamos de aprender a viver em sociedades cada vez mais diversas.
Muitos destes imigrantes e dos seus filhos serão nossos concidadãos amanhã e farão com toda a justiça parte da colheita das sementes de progresso de cuja plantação hoje fazem parte. Merecem-no e temos o dever de não tratar seres humanos, nossos irmãos em dignidade, como recursos descartáveis. Mas há quem agite contra eles o ódio que mina a convivência democrática.
Finalmente, surgem falsos profetas, tentando apropriar-se do monopólio da representação de um povo “puro”, contra segmentos desse povo “corruptos”, alimentando-se de ressentimentos e procurando capitalizar energias destrutivas.
Todos estes fatores nos ameaçam e todos os democratas têm a missão de cuidar da nossa democracia, seja qual for a sua origem social, o seu quadro de referência de valores e ideias ou o seu papel na comunidade. Porque só há governo para o povo, se ele vier do povo.
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