1 - Agora que nos encontramos em pleno processo comemorativo dos 50 anos do 25 de Abril, começo pelo que escrevi aquando da passagem dos 40 anos da Revolução, para uma publicação comemorativa da efeméride, no contexto do combate às medidas da troika e às ameaças que esse tempo representou para os valores que esse “dia inicial, inteiro e limpo” trouxe à nossa Pátria.
“São incertos os ventos, vai oscilando o mastro,
As ondas em revolta abrem o abismo e o breu.
Rodopia sem rumo – a barca perdeu o lastro.
Não há flat no mar, nem há luzes no céu.
Já vai longa a viagem, nos acasos da sorte,
E é escasso o talento dos capitães ao leme.
Voga a barca sem tino, sem destino nem norte;
Quando estremece o mastro, até a alma teme.
Quando a barca partiu, partiu dum cais em festa;
Tinha o vento a favor, tinha o sol de feição.
Mas veio a tempestade, as febres do suão;
E o mesmo Adamastor, a mesma antiga besta,
Refulgindo no escuro de uma luz febril,
A cabeça grotesca, o corpo enorme e tosco,
Volta a querer engolir, apesar de estar morto,
Marinheiros e barca, fechá-los no redil.
Mas também desta vez chegaremos a um porto.
Nem mil águas nem medos nos levarão Abril.”
2 – Passados já os 71 anos de vida, nem esqueço, nem quero esquecer o privilégio que foi o ter-me calhado em sorte viver tempos gloriosos no meu País e de ter acompanhado, e participado, já jovem adulto, no fim de um regime bisonho e triste, provinciano e pobre, substituindo-o pela alegria e pela luz da Primavera de Abril.
A mudança da ditadura para a democracia não foi coisa pouca!
Como escrevi no soneto acima reproduzido, nem sempre tivemos capitães com talento, que nos conduzissem a barca para praias amenas, através de mares bonançosos.
Pelo contrário, fomos amiúde embater no Adamastor, e entregues à sua volúpia, por imperícia ou por traição dos timoneiros,
António Costa tem razão, quando refere que os resultados das eleições legislativas de 10 de Março representarão a chegada ao poder de uma nova geração, já nascida, ou com consciência política adquirida após o 25 de Abril – sem o conhecimento vivido, ou sem a impressão, quase táctil, ou epidérmica, do que era o Portugal da ditadura.
Representarão o abandono do comando do País por gente que viveu a Revolução e que, mesmo quando foi incompetente, governou contra os (des)valores do Antigo Regime.
Quer Pedro Nuno Santos, quer Luís Montenegro – um deles será o próximo Primeiro-Ministro -, pertencem à nova geração, já criada em democracia.
A mudança geracional de que fala António Costa tem duas faces: uma boa, a outra, menos boa.
A face boa é a de pensarmos que a democracia é uma aquisição estável, um dado adquirido, que já não necessita do velho antifascismo como fundamento da acção política.
Na verdade, a democracia tem também como atributo a igualdade de todos os cidadãos – pelo que a idade não é um posto.
Os mais velhos não detêm o monopólio do princípio representativo.
Mas a memória faz falta – e é esta a face má dá mudança geracional.
A nossa democracia é ainda recente - e é frágil.
Com escrevia Artur Portela Filho, em “A Funda”, nos idos dos anos de 70 do século passado, faltam-lhe séculos de bom regadio inglês.
Parece até que gente do antigamente já encontrou lugar de acolhimento em novas ou renovadas forças partidárias – e que alguns dos princípios por si defendidos vão vicejando nesses novos prados.
A esse ascenso – palavra hoje pouco usada, mas que fazia parte, em tempos heróicos, da gramática de partidos marxistas-leninistas -, a este ascenso, repito, faz falta a memória, enquanto houver, de quem sabe que o nosso regime democrático, felizmente em vigor, foi construído contra a ditadura – e para que a mesma não voltasse nunca mais.
3 – Como resulta do que acima escrevi, a minha formação, política e pessoal, foi feita no ambiente da luta contra a ditadura.
Fazia parte da tradição iconográfica desse ambiente os banqueiros serem normalmente desenhados com cartola, fraque e charuto, sentados sobre o lombo dos devedores e sugando os explorados pelos bancos.
A evolução do sistema bancário, apos o 25 de Abril, não permitiu aos cidadãos afastar esse protótipo iconográfico, não sendo a transumância entre a banca e a politica seguramente um dos casos de sucesso da nossa democracia – a não ser para os que transitam entre os dois universos, como é corrente acontecer.
Não tenho, assim, em grande conta, nem a banca, nem os banqueiros; e sou daqueles que considera que o País nada deve à banca; mas que esta muito deve ao País – e aos portugueses.
Por exemplo, acredito que Ricardo Salgado tenha mantido os comportamentos ilegais por que foi acusado pelo Ministério Público e mesmo já condenado em juízo.
Mas considero que os direitos humanos fundamentais devem prevalecer sobre a sanha persecutória.
Obrigar Ricardo Salgado a comparecer em Tribunal – e, pior, impor-lhe a exposição da sua actual fragilidade física e intelectual, sabendo que os “media” estariam, como sempre estão, com lugar cativo à porta do Tribunal -, se ele estiver efectivamente doente, constitui uma indignidade.
Se o Tribunal entendesse que era forçoso ouvi-lo, fosse a sua casa, para o ouvir recatadamente.
Quando iniciei a minha vida como advogado, há mais de mais de 45 anos, retorquiu-me uma vez um Juiz – aliás, excelente magistrado -, que procurei contactar a propósito de um lapso da secretaria judicial, que só falava com advogados através do papel selado (como então se usava).
A actual circulação pública de informação, relativamente a processos, quase sempre com violação do segredo de justiça, recomenda que os agentes judiciários procurem preservar o recato e poupem os inquiridos à apropriação pelo público da sua intimidade e das suas fraquezas.
Como era hábito dos magistrados desse tempo.
Mesmo que os visados sejam culpados!
“Est modus in rebus!”
Não há inqueritos válidos.