JOSÉ FIGUEIREDO, ECONOMISTA

O que fazer com o dinheiro russo na posse do ocidente?

A guerra na Ucrânia vai para dois anos e, infelizmente, não se pode dizer que as coisas estejam a correr bem.
O financiamento da Ucrânia esteve, e em certa medida ainda está, por um fio, uma vez que, até há pouco tempo, a Hungria bloqueou com o seu veto o programa de financiamento europeu, ao mesmo tempo que nos Estados Unidos um eventual apoio financeiro à Ucrânia continua embrulhado nas disputas entre o executivo democrata e a Câmara do Representantes que é controlada pelos republicanos.

As notícias que vão chegando da frente de batalha também não são positivas. A Rússia parece ter ganho de novo a iniciativa com ataques distribuídos ao longo da gigantesca frente de mais de mil quilómetros.
Por outro lado, aparentemente, começam a surgir as primeiras brechas na unidade ucraniana com dissensões entre o Presidente Zelensky e o comandante em chefe das forças armadas, o general Valerii Zaluzhnyi.
É neste quadro, tudo menos benigno, que reemerge à superfície o debate sobre o que fazer com os ativos russos que foram apreendidos pelo ocidente, cujo montante pode exceder os 300 biliões de dólares, ou seja, um pouco mais que o PIB português. A maioria desses ativos está em mãos europeias – cerca de dois terços do total estão à guarda da Euroclear, uma empresa europeia de gestão de ativos financeiros sediada na Bélgica.
O que fazer com a montanha de dinheiro russo que foi congelado pelo ocidente tem sido e continua a ser objeto de grande controvérsia. Embora todos os participantes no debate tenham como objetivo punir a Rússia e ajudar a Ucrânia, a verdade é que a forma de utilizar os ativos apreendidos para esse fim está longe de colher unanimidade.
Há quem defenda confisco puro e simples dos ativos e utilização do dinheiro para financiar o esforço de guerra da Ucrânia e, uma vez conseguida a paz, para obrigar a Rússia a pagar pelos danos que causou e está a causar.
Contudo, esta perspetiva radical coloca problemas de ordem legal, política e também potenciais questões complicadas no plano da estabilidade financeira. Finalmente há quem receie o risco de represálias fortes da Rússia sendo que alguns países estão mais expostos do que outros o que, obviamente, dificulta a obtenção de uma visão razoavelmente consensual.
É duvidoso que exista base legal para o confisco uma vez que, formalmente, os países ocidentais que têm os ativos à sua guarda, não estão em guerra com a Rússia. Para os que defendem uma ordem internacional baseada, em regras e não em força bruta, seria um mau começo atropelar as regras ainda que para punir um prevaricador como é o caso da Rússia e ajudar o país ofendido, no caso a Ucrânia.
Por outro lado, a eficácia do confisco, enquanto forma de punição do regime de Putin, seria sempre diminuta – a penalização para a Rússia seria mínima. De facto, a Rússia dispensou muito bem os ativos apreendidos pelo ocidente no esforço de financiamento da guerra. Só em 2022, graças a preços de energia levitados, a Rússia pôs as mãos num excedente da balança corrente no montante de 227 biliões de dólares, ou seja, quase tanto como o dinheiro congelado no ocidente.
O tema das eventuais consequências na estabilidade financeira e monetária pode não ser despiciendo.
As reservas dos bancos centrais, às quais pertenciam os ativos russos apreendidos, são ainda esmagadoramente denominadas em dólares (+/- 50%) e euros (+/- 20%).
O confisco puro e simples dos ativos russos, ainda por cima sem uma base legal sólida, pode levar a que muito países se lembrem da sabedoria popular que diz que nas costas dos outros vejo as minhas.
Colocar-se-ia o risco de muito países deixarem de colocar as suas reservas de banco central denominadas em dólares ou euros e á guarda de instituições ocidentais. Por exemplo. A China poderia repensar a forma de reciclar os crónicos e colossais excedentes de balança corrente que corre todos os anos com consequências que duvido que alguém possa antecipar com um mínimo de segurança.
Podemos estar aqui a fazer o papel de aprendiz de feiticeiro, desencadeando movimentos e forças que depois não podemos controlar. Assumindo que a eficácia prática para levar a Rússia a repensar a sua postura ofensiva é mínima, percebendo que as consequências podem ser imprevisíveis e de dimensão que nem sequer podemos imaginar, parece pouco prudente tomar um risco tão grande quando o benefício pode ser mínimo.
Finalmente a questão das represálias. Há muitos ativos ocidentais na Rússia com países mais expostos e países mais defendidos.
Não por acaso os mais entusiastas em usar os ativos russos são países não europeus (Estados Unidos, Japão e Canada) e os mais cautelosos são europeus, nomeadamente, a Alemanha, a França e a Itália com o Reino Unido, como acontece quase sempre em matéria de política internacional, a aproximar-se dos americanos.
É neste quadro de difícil conciliação dos interesses de todos que parecem estar a surgir modelos que, eventualmente, possam ser aceites por todos.
Já se tinha formado um razoável consenso de que os rendimentos dos títulos russos poderiam ser usados para ajudar a Ucrânia. Tenho alguma dificuldade em perceber como possa ser assim tão diferente pôr as mãos nos títulos ou confiscar os rendimentos. Admito que haja alguma subtileza jurídica que me esteja a escapar.
Vão chegando notícias de que pode estar a formar-se um consenso alargado em torno de um outro modelo e que a solução poderá, porventura, ser debatida no próximo encontro do G7, a realizar no final do mês de fevereiro.
Com vista a evitar a duvidosa legalidade do confisco, a ideia agora ventilada é de usar os títulos russos como garantia para dívida a emitir (segundo formato que desconheço) e, com o resultado dessa emissão de dívida, ajudar a Ucrânia a enfrentar a guerra e, quando for o caso, no seu esforço de reconstrução.
Ignoro se esta habilidade jurídica vai permitir um consenso na próxima reunião do G7. Tenho as maiores dúvidas de que esta solução seja inquestionável no plano jurídico e tenho quase a certeza que a Rússia vai reagir de forma assertiva. Não descartaria a tomada de medidas de represália por parte da Rússia que podem lesar os interesses de muitas empresas ocidentais, sobretudo europeias e o interesse de alguns países mais expostos.
A prudência recomendaria ser muito cauteloso na gestão do tema dos ativos russos apreendidos pelo ocidente. Financiar a guerra na Ucrânia é algo que o ocidente pode fazer sem se envolver em mais sarilhos com a Rússia e seria por aí que as coisas deveriam ir.

 

Data de introdução: 2024-02-14



















editorial

VIVÊNCIAS DA SEXUALIDADE, AFETOS E RELAÇÕES DE INTIMIDADE (O caso das pessoas com deficiência apoiadas pelas IPSS)

Como todas as outras, a pessoa com deficiência deve poder aceder, querendo, a uma expressão e vivência da sexualidade que contribua para a sua saúde física e psicológica e para o seu sentido de realização pessoal. A CNIS...

Não há inqueritos válidos.

opinião

EUGÉNIO FONSECA

Que as IPSS celebrem a sério o Natal
Já as avenidas e ruas das nossas cidades, vilas e aldeias se adornaram com lâmpadas de várias cores que desenham figuras alusivas à época natalícia, tornando as...

opinião

PAULO PEDROSO, SOCIÓLOGO, EX-MINISTRO DO TRABALHO E SOLIDARIEDADE

Adolf Ratzka, a poliomielite e a vida independente
Os mais novos não conhecerão, e por isso não temerão, a poliomelite, mas os da minha geração conhecem-na. Tivemos vizinhos, conhecidos e amigos que viveram toda a...