HENRIQUE RODRIGUES

A reforma da Justiça

1 - Datando-o simbolicamente de 1 de Maio de 2024, um conjunto de 50 personalidades publicou um documento intitulado “POR UMA REFORMA DA JUSTIÇA - EM DEFESA DO ESTADO DE DIREITO DEMOCRÁTICO”, em que “instam o Presidente da República, a Assembleia da República e o Governo, bem como todos os partidos políticos nacionais a tomarem as iniciativas necessárias para a concretização de uma reforma no sector da Justiça, que, respeitando integralmente a independência dos tribunais, a autonomia do Ministério Público e as garantias de defesa judicial, seja inequivocamente direcionada para a resolução dos estrangulamentos e das disfunções que desde há muito minam a sua eficácia e a sua legitimação pública.”

O documento-manifesto assume como o facto que mais imediatamente desencadeou a iniciativa cidadã “…  ver a ação do Ministério Público gerar a queda de duas maiorias parlamentares resultantes de eleições recentes, apesar de, em ambos os casos, logo na sua primeira intervenção, os Tribunais não terem dado provimento e terem mesmo contrariado a narrativa do acusador. A agravar a situação, o País continuou a assistir ao inconcebível, quando, tendo decorrido longos cinco meses entre o Primeiro Ministro se ter demitido, na sequência do comunicado da PGR, e a sua cessação de funções, o Ministério Público nem sequer se dignou informá-lo sobre o objeto do inquérito nem o convocou para qualquer diligência processual.”

Percorrendo a lista das 50 personalidades subscritoras, nela não vislumbramos gente suspeita de ambição de dominar ou condicionar as instâncias judiciais; pelo contrário, o elenco é verdadeiramente de notáveis, cuja acção e reflexão continuada sobre as vicissitudes da nossa vida cívica nos tem ajudado a compreender o mundo que nos rodeia; e mais especificamente, o País que é o nosso.

Integram essa lista três antigos Presidentes da Assembleia da República – João Bosco Mota Amaral, Eduardo Ferro Rodrigues e Augusto Santos Silva -, ex-lideres partidários, como Rui Rio, ex-Ministros - como António Vitorino, Leonor Beleza, António Correia de Campos, Alberto Costa, Fernando Negrão, Maria de Lurdes Rodrigues, David Justino, Vítor Constâncio, Maria Manuel Leitão Marques, José Vieira da Silva, António Monteiro - , os mais duradouros comentadores políticos - António Barreto (também ex-Ministro da Agricultura), José Pacheco Pereira e Miguel Sousa Tavares -, João Caupers, que foi Presidente do Tribunal Constitucional, constitucionalistas - como Paulo Mota Pinto, Teresa Pizarro Beleza, Vital Moreira, da direita (Daniel Proença de Carvalho), à esquerda, (Daniel Oliveira), passando pelo centro (Álvaro Beleza) …

Não se trata, pois, de nenhum grupo suspeito de pouco amigo das liberdades e da democracia ou hostil à separação de poderes; antes o integram personalidades que, por acompanharem mais de perto a vida pública e o funcionamento do sistema político, e por desempenharem ou terem desempenhado funções muito relevantes no âmbito desse sistema, apontam o dedo de forma mais certeira ao que está mal e ao que inquina os ares que respiramos na nossa vida cívica.

2 – Ficou consagrada a frase bombástica de António Costa, quando se tratou de sacudir a herança de José Sócrates e de afastar do PS o activo tóxico da “Operação Marquês”, frase que dizia: “à política o que é da política, à justiça o que é da Justiça!”

Sucede que tal frase não é verdadeira – e o Processo “Influencer” é um bom exemplo de escola para desmentir António Costa.

Não era preciso esperar pelo despacho do Juiz, arrasador para o Ministério Público, para concluir pela insustentabilidade da tese da acusação – pelo menos no que tinha António Costa como suspeito.

Como já aqui escrevi, em crónica anterior, faz parte da competência do Governo seleccionar ou apoiar hipóteses de investimento que, a seu juízo, representem progresso para o País, mesmo que para tal tenha que produzir legislação específica que viabilize tal investimento.

Pode não resultar? Pode! Mas a sanção pela má opção é dada pelo eleitorado, ao fim da legislatura; não é pela perseguição criminal., interrompendo a mesma legislatura.

E, pelo que li, não era mais do que isso que António Costa vinha acusado.

(Embora tal asserção deva ser formulada com a cautela devida; pois se nem António Costa sabe do que foi acusado, já que não foi ainda ouvido … Muito menos nós …)

Também já aqui referi, em crónica anterior, que há uma espécie de justiça poética no facto de António Costa injustificadamente ter caído às mãos do Ministro Público – ele que desaproveitou a oferta de Rui Rio para que PS e PSD pudessem em conjunto promover a mesma reforma da Justiça, e em particular do Estatuto do Ministério Publico, que agora é reclamada pelo Manifesto dos 50, o que já então, na campanha para as legislativas de há dois anos, era manifestamente imperioso.

Rui Rio foi então acusado por António Costa de pretender acabar com a autonomia do Ministério Público, e com isso pretender fragilizar essa Magistratura, tornando-a vulnerável às investidas do poder político para a condicionar.

Sucede que o núcleo do debate não é o de saber se os magistrados do Ministério Público devem ser autónomos ou encontrar-se hierarquicamente subordinados – sobre o que o Manifesto também pretende reflectir.

E pretende bem …

 

3 - Mas essa não é a questão principal.

Com efeito, a autonomia, em si, não é um bem, nem um mal.

(Ou antes, é um bem para os beneficiários dela, os procuradores, que andam em roda livre, sem lhes ser pedida responsabilização - mas não é para satisfazer esses interesses particulares que se organiza o sistema de Justiça.)

Sê-lo-á, um bem ou um mal, na exacta medida em que cumpre ou deixa de cumprir a finalidade para que é concedida.

A autonomia será boa se constituir um instrumento de uma justiça mais justa – passe a redundância -, mais rápida, que acuse com humanidade e proporcionalidade os culpados e se abstenha de acusar os inocentes.

Que não acuse sem provas ou com outras finalidades que não a da própria realização da Justiça.

Mas a autonomia será má se conduzir, por incompetência, desleixo, negligência, reserva mental ou motivação alheia às finalidades do sistema, a atrasos no andamento dos processos, a prescrições ou a decisões erradas, por ineptidão das acusações.

As mais recentes decisões judiciais, implicando responsáveis políticos, invalidando diligência intrusivas por parte ou sob o comando do Ministério Público, acompanhadas da ideia, que se vai consolidando, da iminente prescrição dos crimes de que consta a acusação no Processo “Operação Marquês”, ou outras acusações condenadas ao insucesso porque baseadas em escutas ilegais, têm constituído um fermento que vem levedando a percepção pública de que a autonomia processual dos magistrados do Ministério Público, pelo menos na sua própria interpretação, é mais um mal do que um bem.

É certo que se vem argumentando, a propósito desta questão da interpretação do Estatuto do Mº Pº quanto à prevalência da independência e irresponsabilidade dos magistrados do Ministério Público versus a sua subordinação hierárquica, que a mesma se encontra em apreciação judicial, na sequência da impugnação pelo Sindicato de uma Directiva da Procuradora Geral da República que impunha a orientação hierárquica.   

Mas, como referi, António Costa não tinha razão quando deixava dito que nem a justiça deveria invadir o campo da política, nem esta deveria penetrar no sistema de justiça.

Não é assim: nas democracias, e com a salvaguarda da constitucionalidade, a política, na circunstância, os eleitos pelo povo, é quem determina a conformação das Instituições: mesmo as que operam no âmbito do judiciário, mesmo a organização das Magistraturas.

Assim, se os principais partidos – e se o PSD for fiel, nem que seja só nisto, à herança de Rui Rio e Pedro Nuno Santos mantiver a opinião de que o Manifesto tem pernas para andar, e não “arrastar os pés” –, se os principais partidos, repito, acharem que o debate promovido pelo Manifesto dos 50 corresponde a uma urgência cívica, basta-lhes alterar a lei que aprovou o Estatuto do Ministério Público, expurgando-a do que eventualmente for menos claro.

A Assembleia da República – que constitui a sede do poder legislativo – pode, e deve, interferir no mundo da Justiça, corrigindo as suas ineficiências, endireitando os seus desvios, impondo-lhe os juízos de valor que a comunidade nacional exige.

Se a lei está mal, mude-se!

“Manda quem pode, obedece quem deve”

 

Henrique Rodrigues, Presidente do Centro Social de Ermesinde

 

Data de introdução: 2024-05-08



















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