A gratuitidade das creches do sistema de cooperação e das amas do Instituto de Segurança Social, assumida pela Lei Nº 2/2022, de 3 de janeiro, abriu um capítulo novo na política de cuidados em Portugal. Pela primeira vez o acesso a um serviço no âmbito dos cuidados, no caso dos cuidados à primeira infância, deixou de ter comparticipação familiar.
A adesão social à ideia de frequência de creche sem custos para os pais foi grande. Como a rede solidária co-financiada pelo Estado não cobre a procura das famílias, aquelas que recorriam a creches fora do regime de cooperação, quer no setor lucrativo, quer no setor social em instituições sem acordos de cooperação, acabavam por ser discriminadas em razão de não terem exercido uma opção por creches não co-financiadas, mas terem sido obrigadas a frequentá-las por ausência de alternativas.
O anterior governo respondeu a essa procura levando a gratuitidade para além da sua cooperação com o setor social. A Portaria n.º 305/2022, de 22 de dezembro, abriu a medida a creches de entidades com fins lucrativos e às que, no setor solidário, não tivessem acordo de cooperação, desde que em locais em que se “verifique existir falta de vagas abrangidas pela gratuitidade nas creches da rede social e solidária, com acordo de cooperação com o ISS, I. P” (Nº 2 do artº 1º).
Assim definida, a extensão é transitória, mantendo-se a lógica de que a valência deve manter-se tendencialmente na esfera da cooperação entre o Estado e o setor social e solidário, sem prejuízo da livre iniciativa privada.
O Programa do XXIV Governo muda radicalmente os termos da inovação introduzida pelo Governo anterior.
As creches, propõe o Governo, passarão a fazer parte do sistema educativo. Assim, haverá um segmento do sistema educativo, com garantia do direito à educação universal e gratuita, em que o Estado depende inteiramente de entidades não públicas para a sua concretização.
O Programa de Governo abandona, quanto às creches – e ao pré-escolar - a lógica do pacto de cooperação com o setor social. O Programa assume o compromisso de “alargar a oferta pública e sem custos para as famílias de creche e de pré-escolar, seja aumentando a capacidade da oferta do Estado, seja contratualizando com o sector social, particular e cooperativo, seja promovendo soluções transitórias, em articulação com os municípios e a sociedade civil, nos contextos onde a oferta instalada não seja suficiente para suprir a procura de vagas” (Programa do XXIV governo Constitucional, p. 106).
Os defensores da oferta pública verão aqui a janela para um compromisso com a criação de um setor estatal nas creches. Mas antecipo que aqui se abra essencialmente uma porta para o fim da filosofia de cooperação entre o Estado e o setor social e solidário e para a privatização da rede de creches e estabelecimentos de educação pré-escolar. Deixa de haver uma lógica em que é privilegiada de cooperação com o setor social e solidário. Também não há uma lógica de promoção de oferta pública. Abre-se a uma lógica de mercado o desenvolvimento da oferta, não apenas das creches, mas também do pré-escolar.
A medida, se for concretizada, subverte a lógica de cooperação entre Estado e setor social, hoje predominante nos cuidados à infância e subverte a lógica da primazia da oferta pública, que hoje governa a educação de frequência universal e gratuita.
A quem vir aqui um parti pris meu recordo que o Programa de Governo, sempre que se refere a este assunto coloca em pé de exata igualdade os setores público, social e privado.
A medida parece quase a mesma que foi adotada na anterior legislatura, mas a lógica do Programa de Governo cria uma rutura com o modelo do Pacto de Cooperação para a Solidariedade. Onde, até agora, havia privilégio à cooperação entre o Estado e o setor social, passa a haver a lógica de criação de um mercado financiado pelo Estado. Veremos o que faz o Governo com o seu Programa e como vai o setor social encarar esta evolução liberal.
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