JOSÉ FIGUEIREDO, ECONOMISTA

Dívidas públicas ou uma trajetória insustentável

As dívidas públicas estão atualmente em níveis que historicamente eram coincidentes ou subsequentes a períodos de guerra.Os Estados Unidos tinham em 1945 uma dívida de 112% do PIB e o Reino Unido, à saída da guerra, registava um ratio de 270%. Atualmente os estados Unidos devem 123% do PIB e o Reino Unido 101,3%. Um pouco por todo o lado vemos o crescimento das dívidas públicas que, em parte, se explica pela necessidade de combater os efeitos da crise financeira de 2008/2009 e pelos gastos com a pandemia da covid19. Trata-se de uma justificação parcial porque antes da crise financeira e da pandemia a tendência já era genericamente para dívidas públicas em crescendo.

No início dos anos 80 do século XX as economias de capitalismo avançado, com algumas poucas exceções tinham dívidas não muito longe, nalguns casos mesmo inferiores, a 50%. Uma das notáveis e trágicas exceções era a Itália, a qual, passado quase meio século, ainda não se livrou do problema.
Olhando para as economias ibéricas vemos pontos de partida diversos. À saída dos anos 80 Portugal tinha um ratio de dívida sobre PIB próximo dos 60% enquanto Espanha ostentava um registo imaculado de 42%.
Quando, no início dois anos 90, os pais fundadores do euro lançavam as fundações da que viria a ser a união económica e monetária, sentiam-se confortáveis em fixar o teto da dívida pública sobre o PIB nos regulamentares 60%. É certo que havia a exceção italiana, mas o objetivo parecia atingível.
Hoje a pintura é completamente diferente. Duvido que se o tratado de Maastricht fosse negociado nos nossos dias, ocorresse a alguém propor um máximo nos mágicos 60%. A segunda, terceira e quarta economias do euro, ou seja, França, Itália e Espanha, têm hoje dívidas públicas superiores a 100% do PIB. Quanto a Portugal tem feito uma trajetória notável e, em 2023, conseguiu, com alguma criatividade, um registo oficial que, à justa, é certo, nos livra do indesejável clube dos 100%+.
A última perspetiva do World Economic Outlook, do FMI, datada de abril deste ano, vê, com poucas exceções, a situação a agravar-se até 2029. Entre as exceções estão a sempre exemplar Alemanha e, curiosamente, Portugal.
De facto, a perspetiva é dantesca e tudo aponta para o agravamento dos balanços dos estados.
Comecemos pela guerra e pelas suas consequências. Os orçamentos de defesa terão de engordar. A ameaça da Rússia já não é do domínio da retórica – é uma ameaça real. Que o diga a Ucrânia!
Mesmo num cenário benigno, em que no prazo de um ou dois anos, se encontra uma qualquer solução para silenciar as armas na Ucrânia, as despesas militares vão crescer significativamente porque será sempre necessário construir uma força suficientemente impressiva para dissuadir qualquer nova veleidade agressiva da Federação Russa.
Temos depois a emergência climática e a transição energética. Para um cenário de net zero em 2050 o mundo teria de duplicar o investimento em energia até 2030, ou seja, qualquer coisa como 2 triliões (milhões de milhões) de dólares de investimento adicional no final do período.
Claro que a esmagadora maioria do investimento em energia será financiado por privados. No entanto, calcula-se que 30% do investimento envolvido na transição energética terá de ser financiado pelos estados.
As tendências demográficas são outro fator de degradação dos balanços públicos. Vivemos cada vez mais tempo, mas muito do tempo adicional que vamos vivendo depende de constantes e cada vez mais dispendiosos cuidados de saúde. A pressão sobre os sistemas públicos de saúde é cada vez maior e as contas dos estados ressentem-se inevitavelmente.
Para ajudar à festa foi necessário aumentar as taxas de juro com vista a debelar uma crise inflacionária que começou autonomamente em 2021, mas foi exacerbada com as consequências da guerra na Ucrânia. As contas dos juros dispararam e acresceram aos deficits públicos que, obviamente, engordaram.
Agora temos a ameaça política. Os populismos de direita estão em ascenso um pouco por toda a parte, mas em particular na Europa.
Escrevo já depois da vitória da extrema direita em França na primeira volta das legislativas. Não sabemos o resultado da segunda volta, contudo, o melhor que podemos esperar agora é um parlamento em que a extrema direita não tem maioria absoluta e o governo fica dependente de arranjos pontuais de votos entre as diferentes forças políticas representadas na Assembleia Nacional. Como ainda faltam três anos para a próxima eleição presidencial, podemos imaginar como será penoso o que resta do segundo mandato de Emmanuel Macron.
Seja como for, mesmo no melhor cenário, os dois maiores partidos franceses não primam propriamente por responsabilidade orçamental. Nem a extrema direita nem a aliança das esquerdas têm no seu programa resolver o tema do deficit e da dívida, pelo contrário, as suas propostas eleitorais apontam para um ainda maior agravamento do balanço do estado francês com consequências que nem sequer é fácil imaginar.
Como é que sai disto?
Não há, obviamente, respostas fáceis.
Até agora a vigilância dos mercados tem sido particularmente complacente. Se excluirmos a breve erupção de prometida irresponsabilidade orçamental de Liz Truss, primeira ministra britânica que os mercados varreram do número 10 de Downing Street em poucas semanas (a mais breve permanência de um primeiro ministro na história britânica), não encontramos vigilância apertada pelos mercados.
É estranho! Com a situação atual e com o que podemos antecipar a prazo de cinco anos, os mercados deveriam estar a enviar sinais muito claros aos governos que responsabilidade (já!) é necessária.
Ignoro o que justifica esta extraordinária complacência dos mercados. Talvez queiram acreditar que os bancos centrais vão resolver o problema de novo comprando, mais uma vez, doses maciças de dívida pública.
Não estou certo que a experiência que o mundo viveu nos anos que se seguiram à crise financeira e, depois, à pandemia seja repetível nem acredito que seja desejável que se repita. Voltar a taxas de juro negativas ou injetar montanhas de liquidez nas economias só pode dar mais do mesmo que hoje nos aflige: preços dos ativos (casas de habitação incluídas)  fora de qualquer medida razoável, desigualdade crescente (mais achas para a fogueira populista) e alocação de recursos completamente retorcida.
Porventura o caso mais complicado é o caso americano. Também por lá a putativa vitória de Donald Trump nas próximas eleições vai aumentar ainda mais a pressão sobre o deficit e a dívida. Um belo dia acordaremos com os vigilantes dos mercados a dizer basta. Acontece que o mercado de dívida americano é o maior e mais líquido do mundo e é a âncora de muito que se passa fora da América.
Se der para o torto na América, apanhamos todos!
Sabemos como estas coisas se resolveram no passado com muito poucas exceções: ou a santa inflação a pagar a dívida ou longos períodos de repressão financeira pela autoridade do estado.
Esperemos não chegar aí!

 

Data de introdução: 2024-07-10



















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