HENRIQUE RODRIGUES

Verdes anos

1 - Entrei no liceu em 1962, com 10 anos, e dele saí em 1969, no fim do 7º e último ano - no Liceu Alexandre Herculano, no Porto, que era só para rapazes, que então constituía o único estabelecimento de ensino secundário masculino que existia na zona oriental do Porto e que acolhia também os alunos dos concelhos da parte mais oriental do Distrito.

Tive colegas de liceu que vinham todos os dias de Amarante, de Baião, de Penafiel ou de Paredes, ou mais perto, de Vila Nova de Gaia, para assistirem às aulas.

Ou de Valongo, como era o meu caso, de morador em Ermesinde, desse município.

Havia outro Liceu masculino, o D. Manuel II – também designado, durante a República, e após o 25 de Abril, por Rodrigues de Freitas, restituindo a conotação republicana e removendo a referência ao último Rei de Portugal.

E havia dois liceus femininos – o Rainha Santa Isabel, nas imediações do Alexandre Herculano; e o Carolina Michaelis, junto ao D. Manuel II.

Tal organização da população estudantil, a partir dos 10 anos de idade, e até aos 17, era simples e linear: rapazes para um lado, raparigas para outro.

E alunos, poucos …

Todavia, sendo da norma essa separação forçada entre os dois sexos, que razão movia as autoridades do País a colocar os liceus femininos tão perto dos masculinos, dando com uma mão o que tiraram com a outra e estabelecendo uma espécie de zona de transição em que, devidamente vigiados, rapazes e raparigas faziam o que sempre fizeram para se encontrarem e conhecerem, desde que o mundo é mundo?

Não pretendo aqui fazer a apologia desse modo simples de organização social.

A expansão e democratização do ensino como um direito universal, que verdadeiramente teve início ainda antes do 25 de Abril, com a chamada Reforma Veiga Simão, veio alargar a rede de estabelecimentos, criando pelo menos uma escola preparatória e uma escola secundária em cada concelho, permitindo a todas as crianças o acesso ao sistema de ensino subsequente à escola primária e dando assim a todos a possibilidade de, segundo os seus méritos, e independentemente dos recursos da família, terem idênticas oportunidades.

Não teria sido porventura necessário desbaptizar os liceus, renomeando-os “escolas secundárias”, numa cedência fácil a um populismo “avant la lettre”.

Senti como uma ofensa pessoal terem passado o Liceu de Alexandre Herculano a Escola Secundária Alexandre herculano.

Embora a designação de Liceu Alexandre Herculano permaneça orgulhosamente no cume da fachada principal do edifício, tal como quando o frequentei e que revisito sempre que vou votar em eleições – já que é nesse meu velho Liceu que funciona a minha Secção de Voto.

 

2 – Mas não era a este rememorar de saudade que eu vinha nesta crónica.

Veio-me à lembrança o Liceu porque foi lá que aprendi a falar francês.

E, hoje, 7 de Julho, dia da 2ª volta das eleições legislativas, todos somos mais ou menos franceses.

Quando andei no liceu, não estava na moda o inglês, hoje língua universal e utilizada a propósito e a despropósito.

Não! Em Portugal, nos liceus, a língua principal era o francês – que aprendíamos do 1º ao 5º ano, como currículo obrigatório, enquanto a aprendizagem do inglês só se iniciava no 3º ano e durava até ao 5º ano – final do 2º ciclo do ensino secundário.

Em cinco anos, com várias aulas por semana, aprendíamos muito: a perceber a língua, a falar e a escrever: e ficávamos a conhecer a França, com a minúcia com que é possível aprender pelos livros.

A Geografia de Portugal não era muito mais amplamente estudada do que a Geografia de França, já que os livros de texto tinham como temas a organização territorial, as paisagens, as Instituições, as tradições e até a gastronomia francesas.

A predominância do francês no sistema de ensino correspondia a uma tradição de ligação privilegiada a França por parte das elites portuguesas.

A Revolução que em 1820 reformou a Monarquia em Portugal, segundo o modelo constitucional liberal, fazendo cessar o poder absoluto do monarca, é tributário da Revolução Francesa, que, em 1789, removeu a instituição monárquica.

Essa influência foi, à época, de tal sorte e a adesão das elites ao ideário da “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” de tal força que, mesmo quando os exércitos de Napoleão invadiram Portugal, entre 1807 e 1810, muitos dignitários lusos se bandearam para o lado do invasor, chegando mesmo a formar-se batalhões de soldados e oficiais portugueses para engrossar os exércitos do Imperador, nas campanhas de invasão e conquista que empreendeu noutras partes da Europa.

E, nos finais do século XIX, quem não reconhece a influência da cultura francesa nos “Vencidos da Vida” e a filiação intelectual de Eça de Queiroz?

Basta ler “Os Maias” – o grande retrato do Portugal oitocentista -, ou lembrar o cenário da residência de Jacinto, o “Príncipe da Grã-Ventura”, no 202 dos Campos Elísios, para concluirmos que a época de ouro do romance de costumes português muito deve à tradição e influência francesa.

 

3 - Hoje isso mudou: tanto quanto me dizem, a disciplina de francês é opcional - e poucos alunos a escolhem para o currículo escolar.

O ensino de francês está à beira da extinção.

 Mas, no que me diz respeito, a minha aprendizagem de outros mundos, para lá do que me cercava, foi largamente matriciada pela lição francesa.

Formei-me literariamente com Baudelaire, Rimbaud, Lautréamont e Éluard – e o surrealismo francês em geral; mais do que os Beatles, ouvia Françoise Hardy; e, no tempo sem fim da adolescência, não deixei de acompanhar o desenrolar do Maio de 1968 e o papel dos intelectuais, como Sartre e Beauvoir, nos movimentos sociais.

Ainda hoje, e como é próprio da minha geração, convertida do esquerdismo juvenil ao cânone democrático-liberal, reconheço-me em regra nas análises que sobre a situação política vão publicando Bernard-Henri Lévy e Edgar Morin.

É na tríade emblemática da Revolução Francesa – Liberdade, Igualdade, Fraternidade – e na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão que se fundam as democracias modernas, sob as quais gostamos de viver.

Não se pode chamar democrático a um regime em que qualquer um desses valores é afrontado.

Acabo a crónica sob a jubilosa notícia de que a extrema-direita francesa, racista, foi novamente derrotada pela democracia do voto soberano.

Trata-se de uma boa notícia a fechar a semana – para todos; mas especificamente para os nossos compatriotas com dupla nacionalidade, franco-portuguesa, que não terão de renunciar a uma delas – como eram ameaçados.

 

Henrique Rodrigues, Presidente do Centro Social de Ermesinde  

           

 

Data de introdução: 2024-07-10



















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