PAULO PEDROSO, SOCIÓLOGO, EX-MINISTRO DO TRABALHO E SOLIDARIEDADE

O governo português não gasta o suficiente com saúde

No primeiro fim-de-semana de agosto várias urgências de obstetrícia e também urgências pediátricas estiveram encerradas. Algo que continua a ser notícia, mas deixou de ser novidade. Ao longo do ano, um pouco por todo o país, surgem notícias difusas de serviços hospitalares encerrados.

No Verão o problema agrava-se, diz-se candidamente, por causa das férias dos profissionais de saúde. Longe de mim querer pôr em causa o direito desses profissionais às férias. Mas dificilmente se pode conceber o período anual de férias de um trabalhador como um imprevisto, algo que tem que ser remediado com uma medida excecional. Há-de haver um problema estrutural, que torne este encerramento forçoso, se acreditarmos que os profissionais e os gestores de saúde se orientam pela prestação do serviço com que se comprometeram.

Encerrar serviços deveria ser uma medida excecional, para um acontecimento imprevisto ou incontrolável, mas já não é. O encerramento de serviços como medida de gestão foi incorporado no Serviço Nacional de Saúde, criando nos utentes insegurança sobre como e quando serão atendidos e gerando riscos pelas longas distâncias que por vezes as pessoas têm que percorrer e/ou pelo tempo que têm que esperar até terem acesso ao serviço de saúde de que carecem.

De modo mais discreto, mais raramente aparecendo nas notícias, o problema da falta de profissionais de saúde no Serviço Nacional de Saúde, surge em muitos outros domínios que não os das urgências.

Há um problema estrutural no SNS, que temos que enfrentar se quisermos resolvê-lo. Ele tem que aumentar a sua capacidade operacional e ter mais recursos humanos. Desde a troika defender que os serviços públicos têm que ter o financiamento adequado passou a ser um tabu nacional. Algo que tem que ser ultrapassado se não quisermos que a degradação desses serviços conduza à sua privatização progressiva e consequente aprofundamento das desigualdades de acesso.

Um relatório do Conselho de Finanças Públicas (CFP) sobre o desempenho do SNS em 2023, publicado em junho de 2024[1], é bastante elucidativo dos bloqueios da análise que fazemos a muitos serviços públicos.

O relatório compilou diversos indicadores preocupantes: o volume total de consultas médicas realizadas nos cuidados primários diminuiu pelo segundo ano consecutivo; o aumento de consultas médicas hospitalares não foi suficiente para evitar o aumento dos utentes em lista de espera; em 40% dos casos dos serviços de urgência não se cumpriram os tempos de triagem; 16% dos utentes não tinham médico de família atribuído.

O mesmo relatório apontou “riscos e incertezas” ao desempenho do SNS, que levam, e cito, à “saturação do acesso à resposta pública de saúde que tem com consequência para os utentes que necessitam de cuidados de saúde o risco de aumento das suas necessidades de saúde por satisfazer”. Mas, na vertente orçamental, fiel à visão predominante de que o SNS já é caro para os contribuintes, envereda por recomendações para “a maximização da eficiência e previsibilidade no uso dos recursos” e, como se o SNS não fosse, por definição, financiado pelo OE, queixa-se da “baixa diversificação das fontes de financiamento do SNS, num contexto de crescimento da despesa pública em saúde”.

Lendo-se as conclusões do CFP dir-se-ia que o SNS português não tem um problema sério de financiamento. É pena que o relatório não retire conclusões da comparação internacional de despesa pública em saúde que faz (ver p. 23) e em que se verifica que a despesa pública em saúde em Portugal em 2022 foi de 5,4% do PIB, abaixo da média da OCDE de 7% e muito abaixo dos 10,3% do PIB da França, dos 9,2% da Suécia, dos 7,3% de Itália e dos 6,8% de Espanha.

As análises ao nosso SNS enfermam frequentemente da falta de comparação de meios de que este dispõe quando comparado com os seus congéneres. Uma forma adequada de fazermos essa comparação é a de vermos quanto é que é gasto em saúde por habitante, neutralizando os efeitos dos diferentes sistemas de preços (ou seja, em paridades do poder de compra) nos sistemas públicos financiados pelos impostos e nos sistemas contributivos obrigatórios, que substituem estes em vários países (cf. gráfico).

 

Fonte: Eurostat, [hlth_sha11_hf], dados extraídos a 4/8/2024

Fica claro algo que não é suficientemente sublinhado. O SNS é financiado pelo Estado muito abaixo do financiamento dos sistemas obrigatórios na média da Zona Euro (57% da despesa em Paridades de Poder de Compra) e da UE27.

Este subfinanciamento crónico, pode bem ser acompanhado por problemas de gestão, mas estes últimos não apagam o primeiro.

Não há políticas sociais boas e baratas, ao contrário do que desde 2010 todos os governos têm tentado. Com o passar do tempo, o custo de desinvestimento vai ser visível em cada vez mais domínios dessas políticas.

O que surpreende, neste quadro, não são as dificuldades que o SNS enfrenta, como as que vemos nas notícias. O que surpreende é que se continue a fazer omeletes com tão poucos ovos no SNS. E que se continue a falar do desempenho do SNS – que é em termos comparativos muito superiores ao que o seu nível de financiamento faria prever - como se ele recebesse dos governos a prioridade que merece.

O que não nos pode surpreender são duas das consequências desse subfinanciamento. Aumenta a quantidade de cidadãos que manifestam carências de atendimento em saúde e aumenta a despesa das famílias em saúde, com dinheiro que tiram do seu bolso para pagar um serviço que constitucionalmente lhes foi dito que ljes era garantido como um direito.

 

 

Data de introdução: 2024-08-07



















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