A morte de um cidadão em consequência de tiros disparados pela polícia numa madrugada, num bairro da área metropolitana de Lisboa, convoca-nos para uma reflexão sobre bairros como aquele em que a vítima morreu.
Na verdade, muitos de nós apenas despertámos para esta morte e para a gravidade da ocorrência na sequência dos distúrbios e quase motins dos dias e noites seguintes. Por muito estranho que pareça dizê-lo agora, não foi o episódio de violência policial em si que tornou notícia o que ocorreu, mas a reação popular.
Devemos começar por aqui. Esta não é a primeira morte em recontros entre polícia e residentes nos bairros de Lisboa. Como disse Isaltino de Moraes, Presidente da Câmara Municipal de Oeiras, quando esteve presente no velório de Odair Moniz, ele estava ali presente porque aquilo podia também acontecer no seu concelho.
O que efetivamente aconteceu naquela madrugada trágica continua por esclarecer cabalmente e só as investigações em curso poderão iluminar.
Podemos, contudo, imaginar a partir deste episódio um quadro de mal-estar entre polícias e cidadãos que não podemos aceitar como situação normal. Nem um cidadão pode ter receio de ser parado por uma patrulha da polícia nem a polícia pode ter medo de um encontro com um cidadão.
A confiança recíproca entre polícias e cidadãos ou a falta dela é o resultado sistémico da interação que no tempo a polícia e as comunidades constroem.
Bairros como aquele em que a tragédia ocorreu não são pedaços de paraíso e seria ingénuo pensar que não albergam estilos de vida marginais. Mas é sempre um erro tomar a parte pelo todo e pensar que os bairros são realidades homogéneas e em que não há quem procure uma vida com a normalidade possível. Os erros crassos do policiamento baseado numa cultura de desconfiança levam a destruir pontes com as comunidades e a desvalorizar as suas dinâmicas mais saudáveis. Além disso, abandonam todos aqueles que podiam ser aliados da construção de um clima social mais positivo.
Nada disto quer dizer que se devam desvalorizar os problemas de segurança quando eles existem. Nem se põe em causa a necessidade de um policiamento proporcional às ameaças. Mas há que refletir sobre a adequação dos modelos de policiamento. Se há lugar, como prevê a Lei Nº 38/2009, a que “as forças e os serviços de segurança desenvolvem, em zonas urbanas sensíveis e no âmbito de estratégias integradas de prevenção e intervenção, acções regulares de policiamento reforçado, com recurso a meios especiais de polícia”, estas não podem ocupar o espaço do policiamento nos bairros.
O bom policiamento não pode prescindir do diálogo entre forças de segurança e comunidade, que torna mais eficaz e compreensível o uso da força quando necessário e constrói as bases de uma relação que permite que ele não se torne desproporcionado nem abusivo.
A importância dos vínculos comunitários não é nova nem desconhecida. Há décadas que surgiram os primeiros contratos locais de segurança. São conhecidos casos de boas práticas de relacionamento comunitário estimuladas por chefias policiais. Há vários programas de policiamento especial com provas dadas, como é o caso da escola segura.
O anterior governo deu dignidade de Resolução de Conselho de Ministros à Estratégia Integrada de Segurança Urbana (ver a Resolução do Conselho de Ministros Nº 91/2023), mas com a mudança de governo este quadro integrado e pluridimensional parece ter ficado no tinteiro.
Este governo tem dado outros sinais inopinados de desvalorização da intervenção comunitária. O fim inopinado do programa dos Bairros Saudáveis vale por toda essa distração.
Mas, se quisermos evitar que o clima de segurança nos bairros se degrade, temos de ter presente que os primeiros interessados na segurança dos bairros são os cidadãos que neles vivem e que quebrando pontes com as comunidades ali residentes se torna mais difícil o que se pretende.
É certo que os tempos vão favoráveis a slogans tonitruantes, mesmo que eles agravem os problemas em vez de os ajudarem a resolver. Mas está errado quem pensa que a segurança se constroi com base no medo.
Oxalá nos auxiliemos uns aos outros a vencer o medo que conduz a mortes como a de Odair Moniz. E para isso, finalmente, é essencial não apenas que os fatores que se reuniram na tragédia se não repitam, como que seja garantida justiça a todos os envolvidos, para que não caia um manto de suspeição e dúvida sobre o que aconteceu.
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