Já as avenidas e ruas das nossas cidades, vilas e aldeias se adornaram com lâmpadas de várias cores que desenham figuras alusivas à época natalícia, tornando as noites menos escuras e bonitas. As grandes superfícies comerciais, as montras das lojas mais pequenas às maiores, bem cedo, começaram a ficar, deslumbrantemente, decoradas. Os interiores e janelas ou varandas das casas ficam mais embelezadas com o cintilar de pequeninas lâmpadas colocadas em árvores apropriadas para esta época, naturais ou artificiais, onde se colocam ainda bolas e fitas coloridas. Há casas em que se põe a figura de um “Pai Natal” a subir umas escadas penduradas na parte exterior das chaminés. Em algumas, cada vez menos segundo a minha perceção, constrói-se o presépio.
O mesmo acontece nos equipamentos sociais das nossas IPSS, onde se costumam fazer pequenas festas nas quais participam os familiares dos utentes. Receio ser injusto se disser que em todos esses equipamentos a figura central é o “Pai Natal”, mas se não forem todos, são a grande maioria. Não defendo que se deva abolir este personagem lendário a quem se passou a atribuir a tarefa de levar às crianças os presentes natalícios. O que já não aceito é que se exclua desta celebração o acontecimento histórico, não só religioso, do que está na origem do Natal. É uma obrigação, no mínimo de honestidade intelectual, não ignorar que celebramos o nascimento de uma criança a quem foi dado o nome de Jesus. Permitam-me os que não estejam tão familiarizados com o facto histórico que transcreva a narração bíblica, mas certificada pelo Flávio Josefo, que foi um historiador e apologista judaico-romano, cujas Obras nos deixaram uma visão do judaísmo durante o século I. Escreveu, assim, o Evangelista Lucas: «Por aqueles dias, saiu um édito da parte de César Augusto, para ser recenseada toda a terra. Este recenseamento foi o primeiro que se fez, sendo Quirino governador da Síria. E iam todos recensear-se, cada qual, à sua própria cidade. Também José, deixando a cidade de Nazaré, da Galileia, subiu até à Judeia, à cidade de David, chamada Belém, por ser da casa e linhagem de David, a fim de recensear-se com Maria, sua mulher, que se encontrava grávida. E quando eles ali se encontravam, completaram-se os dias de ela dar à luz e teve o seu filho primogénito, que envolveu em panos e recostou numa manjedoira, por não haver para eles lugar na hospedaria.» (Lc 2, 1-7). Esta é a história verdadeira. Repito que nada tem a ver só com o religioso. Essa é a outra dimensão divina, que já reclama pela fé.
É muito estranho, e até paradoxal, as transformações que têm acontecido, ao longo das últimas décadas, às celebrações natalícias. Quando eu era pequeno, dizia-se que o Menino Jesus descia pela chaminé onde se colocava um sapato para que lá deixasse as prendas. Vivia-se esta fantasia como uma feliz magia. Passadas algumas gerações, passou-se a dar a prioridade ao Pai Natal e essa figura continuou a descer pelas chaminés ou a colocar as prendas nos sopés das árvores de Natal. Agora, a grande maioria assim continua chegando alguns pais a levar os filhos a escolherem as prendas, a embrulhá-las em papéis bonitos que, quando as recebem fazem-se surpreendidos, sabendo já o que lá está.
Apesar da descaraterização celebrativa do Natal que vem acontecendo, é bom continuar a viver este tempo, pois, felizmente, ainda há muita gente que preserva os valores que emanam em torno do 25 de dezembro, mantendo as tradições, mas impregnando-as de sentido e não amarrando-as apenas a exterioridades efémeras e a consumos financeiros exageradíssimos.
É bom haver mais luzes de néon a cintilar, que proporcionem mais claridade num tempo muito cinzento pelo individualismo que leva ao acelerar de procedimentos egoístas. Fundamentalmente que sejam uma motivação para deixarmos entrar em nós a verdade, honestidade, o acolhimento dos outros, mesmo que de outras culturas.
É bom haver entrega de prendas que sejam sinal evidente do carinho que se tem por quem as recebe e não tanto pelo custo comercial de cada uma delas. Que este ritual de dar e receber prendas, ajude a compreender que, em muitas circunstâncias da vida, há gestos e acontecimentos, que pelos impactos transformadores operados no mais íntimo da pessoa, têm um valor incomensurável, mas não têm preço.
É bom enfeitar as casas, colocar nelas a árvore de Natal, como expressão de que sintonizamos com o tempo de festa trazido pela celebração natalícia. Para mim o local mais apropriado para se fazer esta festa é em família. Afinal, ela teve origem no nascimento de um Menino no seio de uma família. É este Jesus, com Maria e José o epicentro destas festas natalícias. Por isso, mesmo os não crentes, por respeito à verdade histórica dos factos deveriam ter em sua casa, nem que seja, um poster evocativo deste acontecimento. O mesmo digo das nossas IPSS. Que não se aproveite a ocasião para fazer qualquer tipo de proselitismo. Com isso não concordo. Apenas, proponho empenho por apresentar a história com verdade.
Estas mesmas preocupações teve o Bispo Manuel Martins ao escrever um poema do qual retiro alguns extratos. «Estamos no Natal e Tu és Natal/ Quem o sabe?/ Quem o sente?/ Quem o testemunha?/ Envergonho-me ter de confessar que/ eu sei/ eu sinto (às vezes) mas/ eu não testemunho/ E a prova está na minha conformidade com/ tanta fome, tanta guerra, tanta exploração, tanta hipocrisia/E a prova está em que vou avançando na estrada/ sem ver quem está na berma/ quem foi arrumado pelo mais forte ou pelo mais hábil; quem chora porque não tem casa, nem trabalho, nem carinho de ninguém; quem mói, amargurado, o abandono dos pais ou o abandono dos filhos; quem nunca se sentiu estimulado com um sorriso, um parabéns, uma flor./ Então, celebramos Natal sem Natal, porque o Natal é atenção/sorriso/partilha. O Natal é justiça/caridade/Amor./ O Natal é parar/ ver e ouvir com os olhos do coração./ O Natal é ajudar a levantar e andar./ O Natal é fornecer razões de viver e de esperar./ O Natal é cantar a vida./ Porque o Natal és Tu./ Sem ti, não há Natal./ Então…então é verdade./ Tristemente verdade: isto que nós celebramos com tanta festa/tanta corrida/tantas prendas/tantas saudações/tantos votos/tanta música/tantos gastos./ Isto não é Natal. Não pode ser Natal. Natal, meu Menino só contigo. Natal, meu Menino, só Tu.»[1]
Fica para reflexão…
[1] Cf. Manuel MARTINS, Pregões de Esperança, Paulinas Editora, Prior Velho 2014, 26 e 27.
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