Um velho provérbio diz-nos que quem está mal, muda-se. É o que fazem milhões de pessoas em todo o mundo, há séculos a esta parte. São muitos, mas não tantos quanto possa parecer, embora os números estejam a crescer nas últimas décadas. Ao todo, a Organização Internacional das Migrações estima que os migrantes serão menos de 4% da população mundial.
Perguntei a uma das ferramentas de inteligência artificial – o Copilot, no caso – o que diz a literatura sobre as razões para as pessoas migrarem e o algoritmo devolveu-me uma lista de tópicos-chave: oportunidades económicas, fatores políticos, razões familiares, fatores ambientais, oportunidades educativas, aspirações culturais e sociais. Uma boa síntese, parece-me, do que impele as pessoas a mudar-se. Na generalidade, as migrações são forças do bem. Nós sabemo-lo da nossa experiência de gerações como país de emigrantes.
A política nem sempre se dá bem com as migrações. As pessoas que se movem exercem uma liberdade fundamental, que muitas vezes os poderes instituídos tentam travar. Em Berlim chegaram a construir um muro que simbolizará essa tentativa de impedir as pessoas de se mover, de as prender a um destino que podem não querer. Nos EUA e na Europa de hoje erguem-se muros de sentido oposto, para impedirem as pessoas de entrar, para as prender aos problemas que desejam deixar para trás.
É mais inteligente ser realista. Não há repressão que impeça a força do sonho dos migrantes. O uso desproporcional dessa repressão apenas os entrega a redes criminosas, a percursos inseguros, à exploração e por vezes à morte. Mas continuarão a tentar. Por outro lado, os países de acolhimento não podem abdicar de ter a sua própria leitura da sua capacidade de acolhimento e das suas condições para receber as pessoas que os procuram. Exige-se de quem exerce o poder bom-senso na gestão de um equilíbrio delicado.
A ONU tem pugnado por essa racionalidade e um passo muito importante nesse sentido foi dado pela aprovação, em 2018, do Pacto Global para as Migrações. Mas o Mundo está a andar ao contrário neste capítulo da salvaguarda da dignidade humana.
O discurso de Trump, ameaçando deportações massivas nos EUA, é um sinal global de incitação a decisões erradas. A recente campanha eleitoral americana lançou muitas sementes da má formulação do problema político da imigração, imputando aos imigrantes os problemas que eles não geram e pintando deles um retrato caricatural que apela aos piores instintos de uma parte dos nativos.
Portugal está a juntar-se à marcha de passos errados que se anunciam. A pretexto do controlo da imigração, fragilizou os circuitos legais de permanência no país, fabricando imigrantes ilegais, dada a incapacidade da rede consular. Agora ameaça coartar-lhes direitos fundamentais. Anunciam-se ataques aos direitos humanos fundamentais, para já com o corte do acesso à saúde pública e com a condenação ao trabalho em condições precárias. Os imigrantes, sabemo-lo, sobrevivem a estes ataques. Serão mais fragilizados, mais dependentes de redes obscuras, terão acesso a menos cuidados. Serão mais doentes. Mas estarão connosco, na mesma.
A economia precisa de mais força de trabalho. Esse é um dado adquirido e assistimos a uma duplicidade de discursos, em que, por um lado se reconhece a necessidade de mais imigrantes e por outro se deixa cair sobre eles anátemas racistas e preconceitos.
Para juntar gasolina ao risco de incêndio, responsáveis políticos começam a fazer alegações sem fundamento que ligam os imigrantes à criminalidade e a PSP, de modo absolutamente errado, vem apresentando com pompa e circunstância, “operações especiais” de segurança que criam a ligação visual entre a raça e o crime que não existe na raiz dos factos.
O discurso de alguns políticos – não falo sequer dos populistas, que esses vivem de agitar fantasmas e são arautos do ódio, tudo o que alimente instintos primários lhes serve – em que se encontram Primeiros-Ministros e ex-Primeiros-Ministros, autarcas de mais que um partido, acirra perceções e cavalga sobre elas, ainda que os dados empíricos as não confirmem.
Mas sabemos como é. Este tipo de atitude e de clima multiplicará as narrativas sobre problemas localizados e rapidamente se assimilará os imigrantes a problemas que lhes são estranhos. Essa inversão já começou. Já começamos a ver a necessidade de clarificar a nacionalidade dos detidos, mesmo que para nos recordar que são portugueses.
A política que tenta cavalgar perceções gera problemas: põe pessoas a pensar que são verdadeiras ligações que não existem.
O que se espera de quem exerce o poder político é que ajude a resolver problemas. Há, claro, problemas para resolver com a imigração. Prendem-se com a construção de uma sociedade inclusiva, aberta à diversidade e com o reforço das estruturas de acolhimento. São problemas que exigem políticas de habitação, saúde, educação, trabalho, proteção social, cultura. Muitas delas não são políticas para imigrantes, são políticas para todos, incluindo os imigrantes.
Há também que procurar que Portugal seja atraente para zonas com que temos laços culturais e que procure, como agora se diz, “talento” que entre nós escasseia agora. Mas, sobretudo, há que manter o problema em perspetiva. E, numa perspetiva portuguesa, importa ter presente que a atitude dos portugueses face à imigração está longe de ser muito positiva. Isso mesmo vimos recentemente no estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos[1], mas já sabíamos que as respostas dos portugueses são consistentemente desconfiadas da imigração há décadas[2].
Agravar as perceções cria problemas e a forma de o evitar é garantir que o exemplo vem de cima. Como bem argumentava Larry Bartels num livro de 2023, as ameaças à democracia vêm do topo[3]. Num artigo recente escrevia ele e deixo para reflexão: “O destino da democracia está nas mãos dos políticos. São eles que escolhem gerir, apaziguar, ignorar ou inflamar os sentimentos populistas”[4]. Precisa-se de políticos responsáveis e prudentes aos comandos, nos tempos que correm.
[1] Ver em https://ffms.pt/pt-pt/estudos/barometros/barometro-da-imigracao-perspetiva-dos-portugueses
[2] Alice Ramos, Ana Loureiro, João Garcia, Migraçõers e refugiados, atitudes e perceções dos europeus, 2016, acessível em https://repositorio.ulisboa.pt/bitstream/10451/26525/1/ICS_ARamos_Migracoes_ResearchBrief.pdf
[3] Larry M. Bartel, Democracy Erodes from the Top: Leaders, Citizens, and the Challenge of Populism in Europe, Princeton University Press, 2023
[4] Larry M. Bartels, The Populist Phantom – Threats to Democracy Start at the Top, Foreign Affairs. Bol. 103, Nº 6, Novembro/Dezembro de 2024
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