PAULO PEDROSO, SOCIÓLOGO, EX-MINISTRO DO TRABALHO E SOLIDARIEDADE

SUSTENTABILIDADE DA SEGURANÇA SOCIAL: Não quero crer que haja bruxas

O debate sobre a sustentabilidade da segurança social regressou mais uma vez à agenda política, com a criação pelo Governo de um grupo de trabalho com a missão de definir “estratégias sustentáveis e medidas concretas para garantir o futuro do sistema de segurança social em Portugal”[1].

O mandato deste grupo, segundo o despacho que o nomeia, está muito centrado no sistema de pensões e integra três dimensões dele que obedecem a princípios de financiamento muito distintos.

O sistema previdencial de segurança social, que cobre a generalidade dos trabalhadores, tem um financiamento baseado nas contribuições dos trabalhadores e das entidades empregadoras e garante pensões a que se acede através da carreira contributiva, isto é, do número de anos em que se faz descontos e do valor dos salários sobre os quais os descontos incidiram.

O regime de proteção social convergente, que cobre os trabalhadores com emprego público iniciado antes de 31 de dezembro de 2005, é um regime fechado, no qual não entram novos trabalhadores e foi concebido para aproximar a aposentação dos funcionários públicos do regime de pensões da segurança social. Enquanto durar, este sistema fechado, é influenciado pelas regras que levaram durante décadas o Estado a conceder benefícios aos seus empregados diferentes dos que o setor privado concedia e a ter sido constituído com base na ideia de que o Estado teria recursos ilimitados para gerir as suas aposentações.

O regime de proteção social de cidadania cobre os idosos com baixos rendimentos e é financiado pelos impostos pagos por todos os cidadãos, numa lógica em que a sociedade garante a todos os seus membros, idosos e incapacitados permanentes para o trabalho, um mínimo de dignidade.

Sendo estes três regimes tão diferentes entre si, se nada obsta a que a mesma comissão olhe para a sustentabilidade dos três, seria um gravíssimo erro conceptual que queremos acreditar que não será cometido pensar que ela pudesse procurar essa sustentabilidade por um critério único ou comum.

A sustentabilidade do sistema previdencial de segurança social assenta numa socialização do salário dos trabalhadores em cada momento. Os trabalhadores de hoje renunciam a uma parte do seu salário (as contribuições para a segurança social) para garantir os benefícios das pensões e das outras prestações dos beneficiários da segurança social de hoje e, num contrato intergeracional, esperam que os trabalhadores do futuro participem nesse mesmo circuito, financiando com os seus salários as pensões e outros benefícios dos trabalhadores de hoje.

Nestes termos, a sustentabilidade do sistema previdencial depende, no essencial, da evolução do emprego, dos salários e da demografia[2]. Os estudos previsionais existentes, que todos os anos são apresentados em conjunto com o Orçamento de Estado, dizem-nos que este regime é hoje sustentável. Esses relatórios foram, no entanto, recentemente atacados pelo Tribunal de Contas, numa auditoria cheia de enviesamentos e erros conceptuais, que mistura alhos com bugalhos. Importaria que o Governo defendesse a credibilidade dos seus próprios relatórios, suprisse lacunas e falhas que porventura existam, mas não é nessa direção que aponta a visão que a Ministra tem vindo a defender.

A sustentabilidade do regime de proteção social convergente implica outro tipo de raciocínio. No futuro, quando todos os benefícios dos empregados públicos que iniciaram funções até ao fim de 2005 tiverem sido conferidos e concluídos, o regime extingue-se. Importa saber como foram constituídos esses direitos e quem tem o dever de os garantir, através de que mecanismos de financiamento. O Estado, como patrão, teve a legitimidade para conferir esses direitos. Durante décadas usou e abusou da aposentação como instrumento de gestão de recursos humanos, incentivando trabalhadores a aposentações precoces. Durante décadas não contribuiu para a Caixa Geral de Aposentações ou não contribuiu de modo suficiente e adequado, assumindo que na hora de pagar essas responsabilidades que contraía teria capacidade para o fazer. Essa parte das responsabilidades da Caixa Geral de Aposentações não podem ser atribuídas aos trabalhadores ou aos empregadores de hoje nem aos do futuro, mas a essa entidade empregadora específica que é o Estado. Atribuir a outros, e em particular ao regime previdencial de segurança social, qualquer sobrecarga por essa decisão unilateral do Estado, seria um grave atentado à integridade deste regime.

Já quanto à proteção social de cidadania, a questão da sustentabilidade nem sequer se coloca de modo específico. Sendo este regime um sistema de proteção garantido pela comunidade aos seus membros mais pobres, ele é por definição garantido pelos recursos que os cidadãos e as empresas põem à disposição do Estado através dos impostos. A sua sustentabilidade depende da arbitragem de prioridades orçamentais que o Parlamento terá de fazer quando aprova os Orçamentos de Estado.

Porque se mistura no mesmo mandato da mesma Comissão, sob o mesmo chapéu sustentabilidades tão distintas, mesmo que não pensemos na sustentabilidade social e apenas na sustentabilidade financeira das pensões? A que se refere o despacho da Ministra quando pede uma “análise integrada da sustentabilidade”?

Porque se escolhe para presidir a essa comissão, que se dedica a analisar a sustentabilidade de um sistema de repartição, um perito cuja experiência é centrada em sistemas de capitalização, que têm lógica totalmente distinta (e de que aqui talvez falemos um dia)?

Porque se pôs no mandato da Comissão “reavaliar o regime de reforma antecipada dando prioridade a políticas que incentivem a permanência na vida ativa”, ou seja, porque se quer dificultar a pessoas com carreiras contributivas muito longas que se possam reformar mais cedo, quando já cumpriram pelo menos quatro décadas de descontos?

O risco de que haja uma raposa no galinheiro da segurança social é real e não consigo esquecer que, há umas décadas, quando os benefícios fiscais dos PPR eram significativos, todos os anos em dezembro, mês de o sistema financeiro angariar as poupanças com o engodo desses benefícios, apareciam notícias catastróficas sobre a sustentabilidade da segurança social pública, com os mesmos erros conceptuais, como o de misturar regime previdencial e proteção de cidadania, que agora se intuem comandar a direção da Comissão que foi criada.

Eu não quero crer que haja bruxas, mas…

 

[1] Acessível online em https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/doc/1452-2025-905659876

[2] Já abordei este assunto, aqui no Solidariedade, refletindo também sobre alternativas de financiamento que importa pensar, no artigo “A discussão sobre o futuro da segurança social está de volta”, de abril de 2024, acessível em https://www.solidariedade.pt/site/detalhe/14627 .

 

Data de introdução: 2025-02-05



















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