JOSÉ CARLOS BATALHA, PRESIDENTE DA UDIPSS LISBOA

O poder político a nível central tem uma visão enviesada dos problemas sociais do país

A Volta a Portugal da Solidariedade chega esta edição a Lisboa, um distrito que está sempre no olho do furacão quando as instituições de outras regiões do país reclamam por uma discriminação positiva no financiamento público. Porém, José Carlos Batalha, presidente da União Distrital das IPSS (UDIPSS) de Lisboa, lembra que este é um distrito-espelho do que se passa no país, para além de sentir problemas não tão sentidos noutras regiões de Portugal, como seja o fenómeno das pessoas em situação de sem-abrigo ou a desumanização crescente, em especial na cidade de Lisboa, que provoca inúmeras situações de solidão.
Por outro lado, José Carlos Batalha crítica a postura do Estado face ao trabalho desenvolvido pelo Sector Social Solidário, considerando que “o poder político, a nível central, tem uma visão enviesada dos problemas” e, em termos de cooperação, “o Estado não tem acompanhado devidamente as necessidades do sector e não tem dado ouvidos, como devia dar, às vozes autorizadas”, como a CNIS, o maior representante do sector.

SOLIDARIEDADE - Que retrato podemos traçar do Sector Social Solidário no distrito de Lisboa?
JOSÉ CARLOS BATALHA - O distrito de Lisboa é muito heterogéneo. É um distrito grande e com muita população e tem, de facto, muita heterogeneidade. Neste momento, temos cerca de 500 instituições associadas na União, num universo de 800 e muitas IPSS, que, supostamente, cobrem as necessidades das comunidades que servem. E por ser um distrito tão heterogéneo, tão diferente, com realidades sociodemográficas diferentes, com estruturas e também com implantação, do ponto de vista económico, com desigualdades gritantes, o distrito de Lisboa é, de facto, uma mistura difícil de gerir do ponto de vista das respostas sociais e das novas necessidades que as comunidades têm, em função destes fenómenos sociais, como a imigração, o envelhecimento, a desertificação da cidade, a solidão dos mais velhos, a colocação das populações nas periferias… Ora, tudo isto mostra e requer respostas sociais adequadas a estas necessidades e exige das instituições, não só uma dinâmica e atualização de respostas, mas sobretudo uma capacidade das entidades, em especial das autarquias, de estarem em consonância com o Sector Social Solidário e olhar para os fenómenos sociais e para as mudanças societais e encontrar as respostas adequadas.

Sempre que se fala em discriminação positiva no Sector Social Solidário comparam-se sempre os territórios considerados desfavorecidos com Lisboa, passando a ideia de que na capital tudo está melhor em relação ao resto do país. No entanto, Lisboa também tem grandes desigualdades territoriais, não tem?
Sem dúvida. Aliás, se olharmos para a cidade de Lisboa, ela é uma manta de retalhos e um espelho claro das desigualdades, em que temos instituições em bairros favorecidos e outras em bairros em que existem fenómenos de marginalidade a céu aberto e que geram marginalização e outras situações complicadas do ponto de vista social que todos sabemos.

Muitas vezes mais gritantes do que noutras zonas do país…
Exatamente, com intensidade mais gritante. Nas zonas rurais ainda há alguma solidariedade de vizinhança, que é muito importante, e que se sente nas zonas mais rurais do distrito. Agora, na cidade e no distrito existem grandes assimetrias. Na cidade de Lisboa ainda existe essa solidariedade de bairro, mas depois existe o anonimato, prédios superpovoados de gente que não se conhece, que não diz um “bom-dia”, de gente que não é capaz de estar atenta às necessidades do vizinho, de gente que vive num individualismo atroz. E isto gera solidão. Ninguém quer saber de ninguém e esta é a doença mais grave que temos, a solidão. Numa cidade que se foi desertificando, com as pessoas a buscarem as periferias, as questões económicas e o turismo são fenómenos que correram com os velhos dos seus bairros típicos… E, depois, é uma cidade que tem na sua periferia bairros complicados, alguns não tão periféricos, e onde há fenómenos complicados. Isto é Lisboa, mas olhando para o demais território do distrito, temos aquela zona superpovoada a caminho de Sintra, depois temos a zona saloia e regressando junto ao Tejo, a zona mais a norte, Cadaval, Azambuja ou Alenquer, onde existe um misto de ruralidade com indústria e serviços e que também se foi descaracterizando, o que originou alguns fenómenos sociais a requerem novas respostas sociais.

E, neste momento, qual é o grande obstáculo para que as IPSS possam melhor prosseguirem a sua missão?
Desde logo, ao nível da cooperação, creio que o Estado não tem acompanhado devidamente as necessidades do sector e não tem dado ouvidos, como devia dar, às vozes autorizadas do Sector Social Solidário. Não querendo puxar a brasa à nossa sardinha, mas o sector é representado, na sua maioria, pela sua maior organização, que é a CNIS. Por isso, considero que falta ao Estado olhar para este sector e perceber o que ele tem a dizer. A CNIS é uma voz autorizada e forte e a que melhor pode espelhar o que o Sector Social Solidário precisa. E precisa de um Estado atento, que tenha no sector aquilo que diz em teoria, e que é nós sermos parceiros, mas na prática não se porta como parceiro. E o desenho das políticas públicas é, muitas vezes, feito nos gabinetes, desconhecendo a realidade concreta. O Estado, muitas vezes, não põe a mão na massa e não se socorre de quem põe as mãos na massa para perceber as realidades. E, assim, produz políticas públicas que estão desadequadas do que é a realidade nacional.

E qual a maior lacuna em termos de respostas sociais no distrito?
Lisboa é um bocadinho o espelho de tudo o resto… Eu diria que Lisboa tem necessidade de dar resposta a necessidades que não se verificam noutros locais e estou a falar, por exemplo, dos sem-abrigo. É um fenómeno que está devidamente localizado. Lisboa tem este problema, outras zonas não. Agora, a nível de todas as respostas sociais, das áreas da infância, da terceira idade ou da deficiência, é evidente que algumas têm uma maior dimensão, tendo em conta a questão demográfica. As necessidades em todas as outras respostas são transversais ao país, em Lisboa ganham é uma maior dimensão. Há fenómenos que se agudizam nas grandes metrópoles. Diria que Lisboa tem as necessidades do resto do país, salvo as referências que fiz. Em Lisboa sentimos muito a solidão dos mais velhos…

Uma solidão no meio de uma multidão de gente e não tão a solidão isolada das zonas do interior do país…
É verdade, no interior há uma solidão isolada, mas há a possibilidade de haver um olhar de um vizinho. Lisboa não tem isso. As pessoas vivem para si e não se conhecem, é um fenómeno de desumanização. Os transportes públicos não têm em conta os mais velhos. O envelhecimento da população, a par das alterações climáticas, é o grande desafio que enfrentamos. Este é um desafio que se sente na grande cidade, mas igualmente no país inteiro. O país está velho.

Num contexto de muita população, também aqui se sente o problema, transversal ao país, no recrutamento de trabalhadores?
Em Lisboa esse problema sente-se muito mais. Sabemos que o Sector Social Solidário emprega muita gente, os números são eloquentes, e em muitas localidades, a seguir ao Estado, são as instituições o maior empregador, mas também sabemos que as pessoas, se calhar, optam por ir para um supermercado em vez de irem para uma instituição. Temos relatos de instituições que todos os dias no fazem chegar o lamento de que não conseguem recrutar pessoas, ou que estas começam de manhã e à tarde já não aparecem. Isto porque as instituições não podem pagar mais, não é um sector atrativo e tem dificuldade em contratar mão-de-obra qualificada, para melhorar a qualidade. Não trabalhamos com peças, trabalhamos com pessoas para pessoas, que precisam de serviços de qualidade, serviços que dignifiquem as pessoas. E, para isso, temos de cativar e atrair as pessoas e isso também se faz com remunerações atraentes. Sentimos isto e as instituições de Lisboa sentem muito isso, em especial as instituições da área da deficiência e dos idosos.

Como é a relação das associadas com a União e quais as maiores solicitações mais frequentes?
As solicitações são muitas, do ponto de vista laboral, da gestão e da organização da instituição, do ponto de vista da contabilidade ou da fiscalidade. Temos uns serviços administrativos muito competentes, tal como uma equipa de assessores com grande aptidão e que dá resposta aos milhares de pedidos que temos ao longo do ano. Questões laborais, fiscalidade e contabilidade são as solicitações mais frequentes. Por outro lado, e isto é uma questão cultural, as instituições não têm uma participação muito ativa, só se socorrem da União quando precisam, não antecipam as situações. Vamos fazendo este trabalho de estar ao serviço das instituições, a disponibilizar instrumentos e respostas, no sentido de possibilitarmos que as instituições sirvam o melhor possível os seus utentes.

E em termos de ações direcionadas às associadas, quais têm sido as apostas da UDIPSS Lisboa?
Desde logo, temos apostado, e queremos continuar a apostar, em termos uma relação privilegiada com as associadas, quer ao nível da formação, quer desta proximidade. Ao longo do ano, como o distrito é muito vasto, temos feito aquilo que, pomposamente, chamamos de Presidência Aberta. Vamos para os diferentes concelhos reunir com as instituições, porque os problemas de Torres Vedras serão seguramente diferentes dos de Oeiras, da Azambujo, de Sintra ou de Lisboa. Portanto, vamos ao encontro das instituições, fazemos um périplo pelo distrito, devidamente organizado, com toda a equipa de assessores. São ocasiões para as instituições colocarem as questões que estão na ordem do dia. Há ali, não só uma resposta mais política da Direção, mas também uma resposta técnica dada pelos assessores. Depois, fazemos encontros temáticos. Ainda recentemente fizemos um encontro no ISCTE sobre respostas sociais, com um grupo de trabalho que elaborou um documento que, depois, foi entregue à secretária de Estado da Segurança Social, que esteve no encerramento. No final, elaborámos um documento com as realidades concretas das instituições e que entregámos ao governo e à CNIS. Porque esta relação é feita pela CNIS, mas nós também colaboramos com a CNIS nestas organizações.

E como é a relação com a CNIS, que já foi algo conturbada?
Foi, não há que o escamotear. A relação com a CNIS, em tempos, foi conturbada, mas depois fez-se um caminho de aproximação, de comunhão, e neste momento o presidente da UDIPSS Lisboa é o presidente da Mesa da Assembleia Geral da CNIS. Entendemos que, com todos os defeitos e todas as virtudes das organizações, a CNIS é o nosso edifício. Sendo nós a maior União Distrital, o maior andar deste edifício, estamos em consonância e em estreita e leal colaboração com a CNIS.

O PRR chegou às instituições do distrito e que ponto da situação é possível fazer da sua execução?
O PRR chegou pontualmente, também como outros programas que o antecederam, mas creio que não teve a expressão que devia ter em Lisboa. Segue um pouco aquilo que é a dificuldade de execução que é assumida na implementação do PRR. Tendo em conta as exigências, o PRR tem alguma dificuldade em implementar-se no distrito de Lisboa.

Se o presidente da UDIPSS Lisboa fosse empossado ministro do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, qual a primeira medida que tomava a pensar no Sector Social Solidário?
Para ser empossado, teria que ter um cargo político, algo que não quero… Como presidente da UDIPSS a ser empossado ministro, a primeira medida que tomava era ir conhecer a verdadeira realidade das instituições. O poder político, a nível central, tem uma visão enviesada dos problemas. Temos de ter a humildade de perceber qual é a realidade e isso faz-se indo ao terreno, olhando nos olhos os problemas e só assim poderemos fazer políticas públicas que sirvam os reais e verdadeiros interesses das instituições.

Pedro Vasco Oliveira (texto e fotos)

 

Data de introdução: 2025-02-06



















editorial

COMPROMISSO DE COOPERAÇÃO 2025-2026

O Compromisso de Cooperação entre o Estado Português e as Entidades Representativas do Setor Social e Solidário (ERSSS) para o biénio 2025-2026 reflete o reconhecimento da importância estratégica do setor social e...

Não há inqueritos válidos.

opinião

EUGÉNIO FONSECA

O voluntariado reforça a solidariedade das IPSS
A identidade das IPSS é a solidariedade. Nem todos poderão ter a mesma ideia sobre este valor humano nem a prática da mesma é igual. Até agora, não encontrei um...

opinião

PAULO PEDROSO, SOCIÓLOGO, EX-MINISTRO DO TRABALHO E SOLIDARIEDADE

A minha migalha de consignação de IRS é para quê?
Este ano podemos consignar um por cento do nosso IRS a uma entidade de natureza social, ambiental, cultural ou religiosa, o dobro do que podíamos fazer anteriormente. Não é uma quantia...