CRECHE DO POVO – JARDIM DE INFÂNCIA, TORRES VEDRAS

Há 50 anos a dar o melhor presente às crianças: uma boa educação

Na ressaca da Revolução dos Cravos de 1974 e aproveitando a dinâmica social por aquela gerada, um pouco por todo o país, nasceu em Torres Vedras a Creche do Povo. O próprio nome bebe muito nos tempos que se viveram, em especial, naquela segunda metade da década de 1970.
Uma das principais alterações que o tecido social português sofreu foi a entrada, em massa, das mulheres no mercado de trabalho, livres que estavam das amarras de um regime que as empurrava para o trabalho doméstico. E foi nesta dinâmica que a educadora de infância Tati, juntamente com a auxiliar Idalina, fundaram o que viria a ser a Creche do Povo - Jardim de Infância, uma resposta completamente pioneira em Torres Vedras.
“É claro que tiveram apoios, pois estava-se em período pós-revolução. De resto, não havia creches aqui em Torres Vedras, as mães começaram a trabalhar e não havia resposta para as crianças, num tempo em que as licenças de maternidade eram muito reduzidas. Muitas mães, passado um mês, estavam a regressar ao trabalho”, recorda Ângela Fernandes, coordenadora pedagógica e a mais antiga funcionária da instituição, onde começou a trabalhar aos 16 anos ainda como auxiliar.
Na altura, a Câmara cedeu um edifício, onde hoje funciona a CPCJ, e a 2 de dezembro de 1974 foi fundada a instituição. Inicialmente, manteve-se apenas uma educadora, que contava com um grupo de auxiliares. “Só mais tarde, com o aumento do número de crianças é que começaram a entrar outras educadoras”, refere a coordenadora pedagógica da instituição, acrescentando: “Como não havia mais oferta, o número de crianças foi crescendo na instituição, que, desde início, teve propósito solidário”.
Assim, tal como a Revolução de 25 de Abril, a Creche do Povo celebrou, em dezembro último, 50 anos de serviço à população de Torres Vedras, cinco décadas em que muitas crianças ali deram os primeiros passos no seu percurso educativo, algumas delas que hoje já são pais de petizes que andam ou andaram na instituição.
“Filhos de antigos alunos da Creche do Povo há muitos. Eu, como educadora, tenho os filhos de pais que foram meus alunos também”, conta Ângela Fernandes.
“Esta vinda dos filhos dos antigos alunos é muito boa. É o reconhecimento de que estamos a fazer bem o nosso trabalho. E demonstra, acima de tudo, a muita confiança que têm em nós, porque nem equacionam colocar os filhos noutro lugar”, sustenta Isabel Lopes, presidente da instituição, ao que a coordenadora pedagógica acrescenta: “Ainda hoje ouvimos de gente com 30 anos a falar dos croquetes da Creche do Povo. Os croquetes dos passeios são muito falados e apreciados. E estamos a receber mesmo muitos filhos de ex-alunos, porque têm prioridade. Também é algo que foi conquistado há poucos anos”.
Em 1999, deu-se a mudança para as instalações atuais, fruto de uma construção apoiada pelo PIDDAC, erigido num terreno cedido à instituição.
“E houve ainda o apoio de diversos empresários locais, porque quando o edifício ficou pronto não havia uma cadeira para sentar uma criança. Cada sala foi apadrinhada por uma empresa local, que patrocinou o seu equipamento. Felizmente, não recorremos à banca”, explica a presidente, lembrando a relação positiva com a comunidade de Torres Vedras: “Sempre tivemos uma relação muito boa com a comunidade e sempre estivemos abertos à comunidade. Apesar de já não estarmos numa localização tão central como quando a Creche do Povo surgiu, continua a ser muito procurada, o que se reflete na lista de espera”.
Apesar do carácter solidário da instituição desde a sua génese, no final do século passado a instituição era de certa forma estigmatizada.
“Nos anos 1990 éramos catalogados um pouco como uma creche de elite, porque chegava um médico que vinha fazer um internato no hospital, perguntava qual a melhor creche para pôr o filho e toda a gente lhe dizia que era a Creche do Povo! E havia oferta de privados, mas a Creche do Povo era a referência”, recorda Ângela Fernandes.
Cinco décadas depois da entrada em atividade, com uma educadora e uma auxiliar, a instituição de Torres Vedras acolhe 84 crianças em Creche, 125 em Pré-Escolar e ainda 50 em CATL, apoiada numa equipa de 52 trabalhadores.
O CATL, que assegura pontas e ainda todas as pausas letivas, uma vez que só fecha uma semana em setembro “para limpezas”, foi recentemente bafejado pelo Orçamento Participativo da autarquia de Torres Vedras, em cerca de 11 mil euros.
“Este é um projeto para renovação da caixilharia do edifício, que, aliás, nem é nosso”, sublinha Isabel Lopes.
Segundo as responsáveis, socioeconomicamente os utentes da Creche do Povo é transversal.
“Temos de tudo. De facto, temos muitos pais com profissões liberais, por exemplo, na altura da Covid-19 houve muita gente a vir morar para aqui, para quintas e não só, e colocaram aqui os filhos, mas também temos muita gente que, antes da Creche Feliz, pagavam 20 euros”, destaca a presidente da instituição.
Sobre a Creche Feliz, também a instituição de Torres Vedras tem razões de queixas do programa, pela insuficiência do financiamento.
“Neste momento, não é benéfico para a instituição, porque o custo médio por criança não é pago pela Segurança Social. Logo de início, quando a medida foi adotada, viu-se que não cobria o custo médio por criança! A Creche Feliz devia ser, igualmente, segundo os rendimentos das famílias. Há instituições que já fecharam salas de creche porque não conseguiam suportar os custos. Vamos vivendo, mas não está fácil”, considera Ângela Fernandes, ao que Isabel Lopes acrescenta: “Tem de ser um princípio geral e abstrato, é certo, mas devia haver exceções consoante as situações concretas”.
O que também surgiu por arrasto da Creche Feliz foi o crescimento dos números na lista de espera.
“Com a Creche Feliz também se notou um aumento da lista de espera, porque alguns pais, no sentido de poupar dinheiro, e que antes deixavam os filhos com os avós ou outros familiares, agora, como é gratuita, vêm todos para a creche. Tem acontecido muito, antes os filhos ficavam com os avós, mas agora vêm para a creche”, revela a coordenadora pedagógica, uma ideia reforçada pela presidente: “Sempre tivemos lista de espera, mas com a gratuitidade cresceu muito”.
Já sobre a extensão da gratuitidade ao Pré-Escolar, como vem sendo falado, as responsáveis pela instituição colocam sérias dúvidas.
“Já se ouviu falar, mas só seria vantajoso se o valor por criança acompanhasse o custo real. Atualmente, com a comparticipação dos pais, e com o que é pago pelo Estado, as coisas ficam equilibradas”, refere a presidente Isabel Lopes.
Com os constrangimentos criados pela Creche Feliz, mas não só, as contas da instituição não estão no melhor momento.
“As contas estão mesmo desequilibradas. Isto já se adivinhava há muitos anos. No fundo, isto é o acumular de muitos anos de desequilíbrio e depois veio a Covid e nós nunca entrámos em layoff”, revela Isabel Lopes, sublinhando os elevados gastos com pessoal: “A nível de contas, e deve ser transversal às outras instituições, o maior gasto que temos é com o pessoal. A própria Segurança Social nos diz que temos excesso de pessoal… Nós temos duas auxiliares por sala e mais uma educadora. Tivemos há pouco tempo uma Assembleia Geral e as Contas apontavam para 1,3 milhões só em custos com pessoal. A corda vai esticando… quando entrei para a Direção, em 2019, o salário mínimo eram quinhentos e poucos euros e isto é um poço sem fundo. Esta questão cria-nos muitas dificuldades”.
Se o problema já vinha antes da pandemia, com esta agravou-se, uma vez que a instituição manteve todo o pessoal ao serviço, mesmo que nada houvesse para fazer.
“Fechámos durante a Covid, mas as educadoras, todas as semanas, faziam atividades à distância com as crianças e sempre em contacto com estas e as famílias. Houve uma redução nos valores das mensalidades, mas os pais continuaram a pagar. Obviamente, houve quem reclamasse, mas fizemos-lhes ver que, se assim não fosse, quando regressassem não havia Creche do Povo”, conta Isabel Lopes, lembrando: “Temos aqui funcionárias cujos maridos, que trabalham noutras empresas, entraram em layoff e a levavam 300 ou 400 euros para casa. Na altura, com os cofres cheios, não íamos por esse caminho. Isto de sermos uma instituição de solidariedade não é só para fora de portas, também temos de ser solidários com quem mantém a casa a funcionar”.
E nesse período difícil para todos, a instituição abriu a sua cozinha e serviu refeições no hospital e noutros locais.
“Os nossos funcionários ficaram muito agradecidos por não terem ido para layoff e sofrerem um corte no salário e os pais ficaram contentes porque os filhos foram tendo atividades”, acrescenta, lamentando, no entanto, alguma incompreensão: “Não é fácil de gerir muitas vezes, porque somos voluntários e é complicado. Ser dirigente de uma IPSS é complicado, especialmente para quem ainda está na vida ativa, pois nem sequer senhas de presença se tem como os políticos”.
Mas depois da tempestade sempre vem a bonança…
“No regresso pós-Covid, foi uma alegria, porque recebemos as crianças com o nosso Bosque Encantado. Tínhamos o espaço na parte detrás, mas não estava aproveitado. Então, o projeto surgiu no sentido de aproveitar o espaço com algo que as crianças pudessem desfrutar ao ar livre, depois de tanto tempo fechadas”, afirma Ângela Fernandes, ao que Isabel Lopes acrescenta: “E foi igualmente uma forma de as funcionárias também participarem, uma vez que estavam ao serviço. Algumas até traziam os maridos para ajudar. E os miúdos quando voltaram ficaram todos contentes com o espaço que ali têm. Os dos cinco anos diziam que agora que iam embora é que havia um espaço fixe para brincar”.
O Bosque Encantado foi o grande projeto, antes da renovação da caixilharia do CATL, mas é um projeto em movimento, ou seja, “tem de ser alvo de manutenção todos os anos”, feito com “muito trabalho voluntário aos fins-de-semana”.
No presente ano letivo, a instituição escolheu para tema do projeto anual «Crescer com Arte», o que envolve toda a comunidade educativa e os pais também.
Volvidos 50 anos de Creche do Povo, a atual presidente diz ser “um imenso orgulho” ver o que a instituição é atualmente.
“Também há uma grande ligação emocional, o meu pai foi sócio fundador e fez parte do Conselho Fiscal e eu e os meus irmãos andámos na instituição. Para além de ser criada para dar resposta a uma necessidade que existia, de destacar os valores com que foi criada. A fraternidade, a solidariedade, o perceber-se que, independentemente, de onde as crianças viessem, todas tinham uma oportunidade de ter uma educação transversal, daí o lema da casa: O melhor presente para uma criança é uma boa educação. E na Creche do Povo sempre houve filhos de grandes empresários, mas também do funcionário público e do operário”.
Para Ângela Fernandes, “é um orgulho quando os pais chegam aqui e dizem que cá andaram e gostavam muito que o seu filho também para aqui viesse”.
Como seria Torres Vedras sem a Creche do Povo?
“A Creche do Povo já faz parte da identidade de Torres Vedras. É uma instituição de referência, que ajuda outras instituições, por exemplo, cedendo o autocarro. Faz parte de Torres Vedras”.

Pedro Vasco Oliveira (texto e fotos)

 

Data de introdução: 2025-03-19



















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